terça-feira, 29 de abril de 2008

À CONVERSA COM O COSTELETA



NORBERTO CUNHA

Ainda ando por aqui pela cidade. Faro e eu temos muita coisa a dizer um ao outro. Somos bons amantes. Passeio agora pela rua das lojas e procuro um café para tomar uma água. Eis senão quando vislumbro o Norberto Cunha num café logo a seguir à pastelaria Gardy.
Olá meu chapa, há quanto tempo...
Senta-te disse-me ele.
Recordámos tanta coisa... e a conversa deu nisto:

A cidade de Faro e a Escola continuam próximas de ti?

Diria que a relação inversa, simétrica e recíproca, é a que melhor retrata essa permanente e afectiva proximidade. Quer dizer: Sou eu que me sinto, que me faço próximo, que não consigo, não quero nem posso, afastar-me de uma ou outra. Da Escola, da nossa Escola, porque foi palco de decisivas vivências da nossa juventude e me habita a memória como reserva inesgotável do meu imaginário; De Faro, a minha cidade, pelas mesmas mas mais dilatadas razões e algumas outras, como a sua história milenar, a sua beleza, a sua luz, os seus ritmos, a sua vida cultural e associativa e tantos outros motivos que, a referi-los, esgotaria nesta resposta o espaço reservado ao questionário.

Das figuras de Faro que tu cantaste, o que houve nelas que te entusiasmou?
Bem, em rigor, e penso que estás a referir-te ao meu poema satírico “Panorama da Cidade”, apenas evoquei em brevíssimos traços algumas figuras populares que eram acarinhadas por quase toda a gente e cujas alcunhas entretanto esqueci, já que os seus nomes nunca os soube e só muito poucos conheceriam.

Um professor inesquecível?

Só um? Impossível. São quase tantos os inesquecíveis como os demais e seria tremendamente injusto escolher um, qualquer que fosse o critério, silenciando os restantes. A diferentes títulos, aqui vão pois os inesquecíveis, numa sequência perfeitamente aleatória: Palaré, Furtado, Zeca Afonso, Carolino, Amílcar Quaresma, Lurdes Ruivo, Pinheiro da Cruz, Passos.

Um amigo inesquecível …
Os amigos são todos inesquecíveis. Os vivos e os mortos. E infelizmente muitos já partiram. Desculpa, mas também a esta pergunta não vou responder como pretendes pois, sorte minha, eles são muitos, muitos mesmo, desde os que fiz na infância e na juventude, aos que encontrei pela vida fora, até quantos ainda hoje vou fazendo.
Foi bom para ti ser jovem?

Foi. Muito. A juventude é sempre um bem, um percurso vertiginoso que nos embriaga por mais difíceis que sejam as circunstâncias, e que nos carrega as baterias para o resto da vida. É nela que fazemos as primeiras descobertas do mundo e de nós mesmos, que vencemos os primeiros obstáculos, que inventamos sonhos, enfim, como seres em auto-construção na identificação das suas potencialidades, possibilidades e limites. É na juventude que fruímos plenamente, como nunca antes e muito raramente depois, o simples mas empolgante prazer de estarmos vivos.
Um reformado é um homem que já não presta?

De modo nenhum. O valor e os préstimos de um ser humano transcendem a sua função de agente produtivo, necessidade cooperativa sem a qual a sociedade seria basicamente inviável. Mas a vida social perderia todo o sentido se se confinasse na produção/consumo de bens. Aliás, mesmo que se coloque a questão dentro de tais limites, duas observações devem ser feitas. A primeira é que quem se reforma (sem ser por velhice ou doença) não o faz por se ter tornado inapto, mas no exercício de um direito tão legítimo como o daqueles e que, como eles, conquistou pelo seu trabalho. E quem é empurrado para a reforma nunca o é porque “não preste”. Mas porque adquiriu direitos e os defende, com grande incómodo dos empregadores rapaces, beneficiários do beneplácito e da tutela de um socialismo ou social-democracia sem substância. É que, no desespero por um primeiro emprego, a maioria dos jovens a quase a tudo se submete… Nestes tempos de globalização, a vida humana, os direitos humanos, só “ da boca para fora” continuam a ser sagrados. Sagrado de facto, e em todos os domínios, só o lucro. A segunda observação é que, ainda no estrito domínio do económico, grande parte dos reformados continua a ser prestável, socialmente útil, exercendo as suas competências, ou novas competências, a tempo parcial ou inteiro, com remuneração ou sem ela. Mas ainda que assim não fosse, o que seria da nossas actividades culturais, dos movimentos cívicos, das associações de solidariedade social, da vida de tantas jovens famílias, etc., sem a participação, o apoio desses milhares de cidadãos?

Poesia ou prosa; a escrever onde te sentes melhor?

Como sabes, nos nossos dias a oposição poesia/prosa (na segunda cabe toda a outra escrita) deixou de ser usada para distinguir géneros literários. A poesia, conquanto se apresente ainda com uma mancha gráfica que é pouco comum noutros textos, extravasou dos espartilhos da métrica e da rima, rompeu com o modelo canónico do soneto e de outras condicionantes formais que só por si nunca lhe bastaram para que o fosse. O que não quer dizer que quando obedeça a tais parâmetros o deixe de ser… A distinção literária faz-se hoje de modo mais específico entre poesia e ficção (romance, novela, conto) ou drama, independentemente da escrita “prosaica” da primeira e de uma eventual componente “versificada” nos outros géneros. Mas, não fugindo à questão, devo dizer que me sinto tão bem, ou tão mal, com a prática de qualquer modalidade da escrita, apesar de há muito tempo não publicar poesia. Escrever, como já terás notado, é um prazer por vezes doloroso. Não como um acto masoquista, não. Antes como um acto de abnegação, de entrega, que nos exige mais do que aquilo que à partida estamos disponíveis para dar-lhe, mas ao qual também não nos eximimos. E para mim a escrita é uma paixão. Uma amante sedutora e exigente, sempre insatisfeita, que por vezes nos trai, mas que não conseguimos abandonar.

O teu conceito de escritor?

Não obstante nunca ter feito uma reflexão aprofundada sobre o tópico, não confundo o conceito de escritor com o de literato (poeta, ficcionista, dramaturgo) nem subscrevo a declaração de Saramago de que “escritores todos somos….” E isto, não porque pense que em tudo, como diz Aristóteles, a virtude é o termo médio entre dois extremos. Mas sim porque a escrita pode ser e por vezes é arte mesmo quando dá corpo a obras, a textos, cujo escopo não é o de uma realização estética, pedra de toque consensualmente exigida para a obra literária. Uma crónica, peça jornalística, pode ser uma obra de arte, tal como o são as crónicas de Fernão Lopes (o primeiro historiador pós-clássico, para não dizer moderno); como o são os Diálogos de Platão; os Autos de Gil Vicente; As Confissões de Santo Agostinho; os Sermões do Padre António Vieira; os Ensaios de Montaigne ou a historiografia de Borges Coelho, para ficar por aqui. Para mim, no essencial, escritor é todo aquele cuja escrita contém as condições necessárias ao bom sucesso de um acto de comunicação que se dirige a um universo diversificado de leitores. Dito de outro modo, da perspectiva do leitor, escritor é todo o autor que nos faz experimentar emoções, nos estimula o pensar, nos sugere ideias e nos fornece matéria para as conceber, nos dá pistas para a compreensão do mundo e das nossas experiências, e faz tudo isso, ou muito mais, sem nos cansar, proporcionando-nos o prazer da leitura.

Publicação de
Norberto Cunha


O meu obrigado a NORBERTO CUNHA.

Caro AMIGO NORBERTO.

A arte, na realidade, é um elemento que faz ou não, parte de nós. Não há meio termo. Ou faz ou não faz. Aquele que a sente é o artista ou o homem de talento, que não dispõe de património pessoal. Tudo o que tem é dos outros; tudo o que faz é para os outros. Assim, o artista trabalha para os outros.

É o que tenho para te dizer..

Acrescentarei apenas que me sinto feliz por ter tido a ideia de te ter solicitado esta entrevista.

É que assim, os costeletas que não te conhecem ainda, poderão usufruir do privilégio de ler duas páginas de excelente literatura.

Meu caro amigo, a tua prosa é brilhante..

Aceita um abraço de parabéns do

João Brito Sousa

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