quinta-feira, 20 de novembro de 2008

ANA GASTÃO E CASIMIRO DE BRITO


ESCREVER OU A ARTE DE BEM CAIR
entrevistado por
Ana Marques Gastão

Toda a experiência num poema, espécie de canto final em vida. Livro das Quedas, de Casimiro de Brito (nascido em Loulé 1938), entrelaça quotidiano e erudição, leveza e densidade no tempo ininterrupto da linguagem. Não um requiem, mas uma celebração. Mais de 140 títulos publicados, o autor, que esteve ligado à Poesia 61, está representado em 140 antologias e traduzido em 20 línguas. Tradutor, ensaísta, é presidente do Pen Clube Português. Entre outros, recebeu o primeiro prémio de poesia Leopold Senghor (2002) atribuído pela Académie Mondiale de Poésie, Fundação Luther King. "O estilo de um poeta é a sua impressão digital"

A ideia de queda que preside ao seu livro pode ser entendida como inclinação para algo ou alguém, o que nos coloca perante a questão do desejo. Somos uma civilização do desejo? que temos próximo do caos é o desejo.
Somos escravos da ordem vigente, o desejo escapa-lhe, não é disciplinado e liga-nos ao mais profundo de nós mesmos. Se Platão, um enorme poeta, além de filósofo, não tivesse dito que os poetas deveriam ser expulsos da cidade, mas o contrário, o mundo seria completamente diferente. Não haveria vendilhões do templo, mas política feita por sábios ou loucos.

Não há escolha perante o desejo?
Não, como no amor, aliás. O poeta libanês Kahil Gibran escreveu "Se o amor te acenar, segue-o." Felizmente somos contraditórios, não excluímos na nossa fuga à ordem. O poeta move-se entre o desejo e a forma. O estilo é a sua impressão digital. Valéry escreveu sobre a oscilação entre a música e o sentido, mas não chega, deve falar-se também da paixão, da dor do mundo. Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, é uma cosmogonia dotada de voo e queda, um épico subjectivo. Há pontos em comum com o seu livro no sentido de serem obras de uma vida? Talvez por serem ambos estruturas abertas onde cabe tudo. O meu livro é um labirinto. Penso que cada poema é o último e, como no amor, tenho a sensação de que o vivo pela primeira vez. O corpo que amamos e conhecemos, por mais que se dispa, está sempre vestido porque possui o enigma.

Há muito de uso da tradição, de intertexto, de deslocamento, de polifonia nesta obra. Um livro de poetas?

Claro, é uma polifonia dramática, onde estão presentes os poetas marcantes da minha vida.Pound, outro autor de uma épica sem enredo, escreveu que chegou demasiado tarde à suprema incerteza. Poderia dizer o mesmo? A incerteza invadiu-me muito cedo.O meu caminho é o de perder- -me no labirinto.
Livro das Quedas é poesia em convulsão, mas filtrada pelo despojamento?

Esse despojamento tem causas idade, conhecimento poético e ser capaz de levar 19 anos a trabalhar um poema, como aconteceu com o número 55 do livro. Em fonética, queda quer dizer leitura final de uma frase, baixando a voz. Escreve baixo nesta obra, que exalta, de alguma forma, o mínimo?

Penso que sim, por isso digo "A música/já não dói, o corpo já não o sinto fugir de mim..."

(continua)

recolha de
JBS

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