segunda-feira, 16 de novembro de 2009

CANTINHO DOS MARAFADOS

Cantinho dos marafados

Ao ler o correio do Brasil e a descrição que o costeleta António Encarnação faz de uma das regiões mais importantes daquele país, essencialmente sobre a paisagem, economia e explosão demográfica do sul de Minas Gerais, região que bem conheço, senti uma vontade irresistível de escrever sobre as pessoas.
Entre as inúmeras personalidades nascidas em Minas Gerais, escolhi falar um pouco daquele que considero um dos três poetas maiores da língua portuguesa, Carlos Drummond de Andrade.
Sou um incondicional admirador da sua obra, com a qual me identifico totalmente, entendo que de nada vale acharmos que em verso ou em prosa, algo é muito bonito, que está muito bem escrito, se não nos identificarmos com o seu conteúdo, se não interiorizarmos o que nos é transmitido pelo autor.
O poeta nasceu em Itabira do Mato Dentro – Minas Gerais, em 31 de Outubro de 1902, faleceu em 17 de Agosto de 1987. Filho de uma família de fazendeiros decadentes, estudou na cidade de Belo Horizonte e posteriormente no Colégio Anchieta em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, tendo sido expulso por “insubordinação mental” (nunca ficou esclarecido o que seria insubordinação mental) começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.
Há anos atrás tive oportunidade de assistir a uma tarde de poesia em que o principal declamador era o grande actor que foi, Mário Viegas. No final confrontei-o com o facto de no espectáculo que apresentava, existirem obras de, para além de poetas portugueses, também dos consagrados brasileiros, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, mas nada de Carlos D. de Andrade.
Senti algum desconforto na resposta que foi inconclusiva, mas também senti que a descriminação não era o motivo que conduzia a tal ausência, o que me deixou mais tranquilo.
Fui encontrar a resposta algum tempo depois na sua última entrevista, concedida a Geneton Moraes Neto (Dossiê Drummond, ed. Globo, 1994). Dizia então:
“Nenhum poema meu ficou popular. A verdade é essa. Considero popular nas gerações antigas, o “ouvir estrelas”, de Olavo Bilac; o “mal secreto” de Raimundo Correia; “meus oito anos” de Casimiro de Abreu; “ A canção do exílio” de Gonçalves Dias. São dois ou três, nenhum outro fica. Geralmente são poemas pequenos que a memória guarda com mais facilidade. De mim ficaram versos. “ E agora José?” não é verso; é uma frase. “Tinha uma pedra no meu caminho” – e só, não creio que tenha ficado nada mais. Nada houve meu propriamente popular. Em geral as pessoas guardam a imagem do poeta, mas não guardam o verso, até porque a maior parte dos poemas são em verso livre, não são metrificados nem rimados, então é mais difícil guardar.”
Para aqueles que eventualmente não conheçam ou os que queiram recordar aí vai o emblemático :

E agora, José?

E agora, José?
a festa acabou,
a luz acabou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos.
Que ama, protesta?
E agora, José

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu,
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – a agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
Você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde ?

Escrito durante a Segunda guerra mundial, e a ditadura de Getúlio Vargas, José, apesar da dureza, ainda tem o impulso de continuar seguindo. Mesmo sem saber para onde.
Em mais um golpe de asa, José Saramago aproveita o embalo e escreve uma crónica com o mesmo nome, incluída no livro “A bagagem do viajante” . Não vou comentar, só destaco que teve, valha-nos isso, o pudor de referir o nome de Carlos Drummond de Andrade e criar o personagem José Júnior, na aldeia de São Jorge da Beira, localidade também fruto da sua imaginação; Foi bem conseguido e só isso.
Vou concluir por agora, transcrevendo mais um poema do mestre:

Mãos Dadas

Não serei um poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas, nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
A vida presente.

Carlos Drummond de Andrade.

Voltarei oportunamente ao tema, se o moderador achar que vale a publicação e se vocês que tiverem a paciência de me ler, não vaiarem.
Um sorriso e um abraço, para finalizar.

António Viegas Palmeiro

1 comentário:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Palmeiro
É sempre um prazer ler as suas belas prosas. Acho que todos gostam.
Será pçossível escrever mais reduzido?
Um abraço Costeleta
Moderador