quinta-feira, 14 de janeiro de 2010


VULTOS IGNORADOS DA NOSSA HISTÓRIA (II)

ALFERES MONTEIRO

José Monteiro, é mais um herói desconhecido e ignorado.
Filho do feitor do monte da Alpendurada, foi uma excepção relativamente aos jovens da sua idade. O patrão, dono da herdade, considerando a capacidade profissional do feitor, as suas qualidades pessoais, também uma dedicação à casa de longa data, resolveu patrocinar os estudos do filho do dedicado empregado. O rapaz era esperto e demonstrava ser inteligente.
Um dia chamou o senhor João e foram andando e conversando até à eira. A colheita tinha sido boa e as medas estavam sendo feitas pelo pessoal que carregava a trigo e a cevada da planície, para que, aí por volta do dia de Santa Maria a máquina viesse debulhar o cereal.
O senhor engenheiro Carlos, perguntou então ao senhor João.
- Oh tio João, o que o Zézinho vai fazer agora que acabou a quarta classe?
- Ainda nem pensei nisso senhor engenheiro. A irmã ajuda a mãe lá na lida da casa,
talvez o mande uns dias com o “moiral” das ovelhas para ele ir aprendendo.
- Escute lá, o garoto é inteligente, porque você não o manda estudar?
- O senhor engenheiro está mangando comigo, eu não tenho posses para isso. Tenho para ali uns cinco contos guardados, é verdade que a seara foi boa este ano e que a maquia vai melhorar um pouco, mas e se para o ano for fraco?
Depois a irmã é mais velha e não foi estudar, nem eu podia, não quero que um seja “doutor” e ela uma “Maria ninguém”, podem ser pobres e honrados, o senhor engenheiro sabe o que isso representa, para um homem como eu! E a conversa ficou por aqui!
Quatro horas depois o senhor João foi chamado à casa do patrão, trava-se então o seguinte diálogo:
- Oh tio João, sobre o assunto que falámos hoje de manhã eu estive a falar com minha esposa e como sabe não temos filhos, temos uma casa em Beja onde poucas vezes vamos, mas está comadre Júlia que toma conta de tudo, ficamos sempre na casa de Lisboa ou aqui no monte. Então o José vai para lá e faz companhia à comadre, ela trata dele e ele aproveita, faz a admissão e para ano vai para o Liceu.
- Patrão eu não sei se isso vai dar certo, mas se é assim que o senhor engenheiro quer, pois que seja.
Não se preocupe com as despesas, tudo o que ele precisar nós pagamos.
Assim foi, tratado como filho do patrão, passaram vários anos, o José vinha ao monte nas férias, matar saudades e a idade militar apanha-o já no 2º ano da Faculdade.
Um namoro e alguns desvios, com a consequente perda do ano e eis que o bom do José é incorporado na Escola de Oficiais em Mafra.
Curso tirado e eis o garboso, aspirante a oficial. Apesar da perda do ano e da obrigatoriedade da incorporação, era o orgulho do senhor João, da mãe e também do casal seu protector.
Alguns meses depois deu-se a inevitável, mobilização para o Ultramar, com a correspondente promoção a Alferes, na hora do embarque.
A partir daí temos então o nosso alferes Monteiro, um jovem inteligente e cheio de qualidades. Rigoroso sem excessos, honesto, incapaz de prejudicar fosse quem, e acima de tudo acérrimo defensor junto do comando da Companhia, dos homens do pelotão que comandava.
Era um homem do povo, conhecia a linguagem popular dos homens que comandava, era mais um entre eles.
Mas numa guerra, traiçoeira, tudo pode acontecer e aconteceu!
Numa “picada” e numa falha (mais comum do que se possa pensar) dos batedores, uma “mina” destruiu a viatura onde seguia o nosso alferes. Os militares tiveram uma reacção diferente da esperada e aquilo que poderia ser de desânimo, transforma-se em fúria e “varrem” a rajadas de metralhadora uma vasta área em redor do local; uma vez que os responsáveis pela armadilha ainda estavam por perto, as consequências foram devastadoras para eles. Mas voltemos ao “nosso alferes”:
De imediato, foi feita a chamada através do rádio, do pedido de socorro. Um helicóptero com um médico e um enfermeiro finalmente desponta no horizonte, como estávamos relativamente perto da base aérea de Mueda, no norte de Moçambique, a aeronave vinha devidamente escoltada, não fosse o diabo tecê-las.
Estava o jovem alferes José Monteiro, bastante mal, principalmente ao nível dos membros inferiores, as pernas completamente destruídas. É pois evacuado para Lourenço Marques e posteriormente para Lisboa. É substituído por alguém cujo nome não me lembro, o meu herói ERA o nosso alferes.
O tempo encarrega-se de mitigar as dores, não as cura definitivamente mas é preciso continuar e confesso, apesar de contar entre amigos este episódio, nunca mais procurei saber o destino do José Monteiro. Soube que tinha ficado confinado a uma cadeira de rodas, uma vez que foi amputado das pernas e nada mais.
Há uns 3 meses atrás ao ler uma reportagem sobre os sem abrigo de Lisboa, quase desmaiei ao reconhecer o “nosso alferes” nessa noite não consegui dormir, tive imensa dificuldade em acreditar no que via e depois de confirmar, em aceitar.
Sei que mendiga, num parque de estacionamento e recusa ajudas de amigos daquele tempo.
Pergunto:
Onde estará a condecoração recebida no 10 de Junho?
Terá a pensão que lhe é devida? Se não tem porquê?
Fiquei também a saber que uma grande maioria dos sem abrigo de Lisboa, foram militares, ex-combatentes das ex-colónias. O álcool e a droga são alívio para as suas dores, a companhia das suas noites mal dormidas e dos pesadelos que a cada noite se renovam com maior intensidade.
Não sei se foi uma guerra justa ou injusta, sei que a minha geração foi obrigada a sofrer na pele os seus efeitos e as suas consequências, mereciam um maior respeito por parte das entidades competentes, as mesmas entidades que fogem deste flagelo como se os seus portadores tivesse lepra e que certamente os consideram anti-heróis.
O mínimo que deve ser feito é a reposição da dignidade de todas estas pessoas. E não é preciso muito, só vontade para…
O dinheiro é fácil conseguir, qualquer “banquetezinho” que não se faça é receita suficiente para dignificar aqueles infelizes seres humanos.
MEUS SENHORES FOMOS OBRIGADOS

Esta história é verídica, os seus personagens são reais. O problema existe e é real.
Fictícios são os nomes das pessoas e os locais, por razões óbvias.

António Viegas Palmeiro

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu Caro Palmeiro,

Viva.

Achei piada à utilização do termo "eira" na Alpendurada. Curioso.

O teu texto vem carregado de dor e é justo. Mas sendo justo deveria conter, em minha opnião, mais humanismo.

Apelar a uma condecoração nada resolve. Talvez resolva mais bater na tecla da estupidez da Guerra e dar rzão ao slogan MAKE LOVE NOT WAR.

O texto como grito de revolta está perfeito. Mas até onde chega o eco deste grito?

Esperemos que longe.

Ab.

João Brito Sousa

Anónimo disse...

Olá João, como estás?

Estive e reler e na verdade, não me expressei bem!
Eu não apela à condecoração, afinal estamos em sintonia, porque a condecoração foi-lhe concedida num 10 de Junho, a questão é mesmo essa, não lhe serviu para nada.
Obrigado pelo reparo e um abraço
Antonio Palmeiro