segunda-feira, 13 de setembro de 2010

DANOS COLATERAIS

Por Norberto Cunha

Creio ter sido na sequência dos anos áureos da “Luta Livre America-na” (modalidade em que o farense José Luís por mais de uma vez foi campeão) que em Faro vieram a alcançar grande popularidade os filmes de pancadaria, produzidos em série e a preto e branco, quase sem enredo e interpretados por actores de segundo plano. Mal se anunciava a projecção de um deles e os respectivos “quadros” eram colocados nas vitrinas do Cinema Santo António, se presumia que a lotação esgotasse. Se não a das “cadeiras” (plateia) por certo e seguro a da “geral” (bancada) e os candidatos a esta faziam fila junto da bilheteira muito antes da abertura. Os retardatários, que ficavam na cauda, amargavam com a espera. Quando soava que os ingressos já rareavam (embora emitidos em número que excedia a normal lotação…) e a paciência e a esperança lhes começavam a faltar, crescia-lhes a ansiedade e instintivamente (alguns, outros não) desatavam a comprimir e empurrar os da frente. O processo repetia-se, de cada vez a intervalos menores e com maior intensidade. E, empurrão atrás de empurrão, alguns dos que se encontravam no meio acabavam por ser cuspidos da fila. Daí que muitos já não precisassem ou não pudessem assistir à sessão, ou dela desistissem e do bilhete porque, não poucas vezes, a pancadaria começava logo ali. Mas na verdade, também não era só o puro interesse pelo espectáculo que a todos mobilizava. Havia quem apenas (ou sobretudo) pretendesse realizar um pequeno lucro com a revenda de bilhetes. Apesar de, ocasional e acidentalmente, ter presenciado algumas daquelas picarescas e intimidantes cenas, também eu vim a ser contaminado pelo entusiasmo dos apreciadores de tais filmes. E a dada altura surgiu a oportunidade de me estrear como espectador. Com uma sessão no Sábado e outra ao Domingo, ia ser exibida uma película cujo título não recordo com precisão mas era qualquer coisa como “A Vingança (ou o Regresso) de Fu Manchu” e cuja acção (porrada, sem tréguas nem quartel, e a um ritmo estonteante entre gangues rivais) decorria na China. Também já não sei que idade tinha e se, por via dela, a classificação etária dos espectáculos me permitiria, ou não, realizar o meu desejo. Mas ou eu desconhecia o condicionalismo, ou nunca dele me lembrei porque, com todas as minhas forças, queria ir… E pronto. Mas o meu pai, que desaprovava esse género de filmes, quando lhe pedi o dinheiro despachou-me com um “não” sem apelo ou prescrição. No Sábado, porém, pouco antes da sessão, descobri que um primo e amigo meu, um rapagão com o dobro da minha idade, já tinha bilhete. E logo me colei a ele, ignorando a paternal interdição. ”Ó Joaquim, leva-me contigo… Gostava tanto de ver aquele filme…” fui implorando por todo o caminho, com ele a responder-me “não posso” e a mandar-me embora. Já no átrio do cinema, passámos por um dos revendedores de bilhetes e insisti com quanta veemência pude, mas debalde. Ainda assim não desarmei, até que chegámos junto do porteiro e julguei perdida de vez a minha causa. Mas os dois eram amigos, não se viam desde a tropa, demoraram-se na troca de cumprimentos e eu, a um passo do lado de dentro e vendo o porteiro distraído, não resisti (a ocasião faz o ladrão) e para lá me esgueirei nas costas do meu primo. Lesto, meti-me entre outros que seguiam para a bancada e não mais vi o Joaquim, nem à saída. Mas vinha tão eufórico que até me vangloriei pela minha proeza e não dei a menor importância ao desencontro. Passada uma semana, ou pouco mais, reencontrámo-nos. “Ó pá, então eu julgava que te tinhas ido embora, e tu enfiaste-te no cinema sem o porteiro ver?” Atirou-me ele de rajada, sem me cumprimentar, e cortando-me a respiração como se me tivesse dado um murro no estômago. E não esperou pela minha resposta para disparar, de novo em tom acusatório: “Sabes o que aconteceu? Sabes?”. “Ó primo, não sei… mas desculpa lá.” Retorqui, surpreendido, atarantado, quase apavorado. E ele, mais pausadamente desta vez, esclareceu: “Olha: o Marmelada estava de olho lá atrás, julgou que o meu amigo te deixou entrar por ires comigo, discutiu com ele, chateou-o e no fim, por tua causa, o desgraçado foi parar à cadeia…’Tás a ver?” Não estava. De modo nenhum. Contudo, estranhei que por tão pequena e não premeditada travessura tivesse sido castigado um inocente e de modo tão severo. E retorqui, aceitando a acusação do Joaquim: “Mas porquê? Fui eu que tive a culpa…”.“Pois, pois… — corroborou ele — Mas o Marmelada não quis acreditar, pá. Chamou-lhe mentiroso e tanto lhe moeu o juízo, tanto o ralou, que ele perdeu a cabeça.” Também não entendi tão estreita relação entre a cadeia e tal perda, e de viva voz interroguei-me: “Perdeu a cabeça? Foi para a cadeia?”. “Não percebes pá? — retrucou o meu primo com repreensivo sarcasmo — Perdeu a cabeça, sim. O Alfredo ficou tão irritado que desancou o gajo à porrada! Partiu-lhe a cara toda! Deixou-lhe a cara num bolo…”Que da exibição de filmes da série “Fu Manchu” e congéneres resultassem “danos colaterais” como os que habitualmente se registavam na corrida às bilheteiras, era coisa que Marques da Silva bem sabia mas por certo desprezava face às avultadas receitas que proporcionava. Mas que, por acidental e involuntária intermediação de um puto como eu, viesse a sofrer no corpo o reverso dessa ganância, nunca lhe poderia ter passado pela cabeça. E, felizmente, também nunca o veio a descobrir. De contrário, seria a pedra no sapato que na primeira ocasião arremessaria contra mim, pois estava escrito que as nossas vidas tornariam a cruzar-se.

2 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Norberto
Boa "peça". Fez-me recordar o meu tempo naquele tempo em que aos sábados ia, para a geral (bancada de pontapés nas costas) ver os filmes de Abbot e Costello, em que me sentava ao lado de muitas velhinhas e que me diziam: "menino lê as legendas para mim que eu não sei ler".Recordo que era dez tostões a entrada.
Bons tempos
Um abraço
Rogério Coelho

Anónimo disse...

Caro Norberto,

Viva,

Boa narrrativa. Mas este tema é inesgotável.

Havia entradas na Rua de Santo António e na Rua que vai do Acordeon aos Dois Irmãos.

O Rei dessa coisa aí era o Teca.

Conta aí uma história dele.

Ab.
JBS