segunda-feira, 20 de setembro de 2010

DO CORREIO ELECTRÓNICO


PRESUNÇÃO E ÁGUA BENTA
Por Norberto Cunha
Anos volvidos sobre o episódio “Fu Manchu”, voltei a cruzar-me com Marques da Silva. Foi numa noite de verão na Sociedade Recreativa dos Artistas. Havia bailarico na esplanada e como cheguei cedo dirigi-me à pequena biblioteca da colectividade. Talvez lá encontrasse alguma coisa que valesse a pena ler, se não de imediato, numa outra ocasião, mas a escolha ficava feita. Despreocupado, iniciei a pesquisa na primeira estante. Só quando passava para a segunda reparei que, junto à pesada mesa de madeira exótica que servia mais de ornamento que de apoio à leitura, estavam de pé, à conversa, o Dr. António Miguel Galvão e a minha não intencional e indirecta vítima do passado recente. E por instinto dei meia volta para me escapulir. Mas era tarde. Em tom afectuoso, o conhecido advogado já me interpelava: “ Então Norberto? Chegue-se aqui…” Tratasse-se de outra pessoa, e o mais provável seria ter-me descartado com uma qualquer desculpa. Mas ele tinha grande simpatia e admiração por mim, até já me oferecera um exemplar autografado da sua “Historia da Companhia das Pescarias do Algarve”, e não tive coragem para tamanha desconsideração. Olhei para trás simulando surpresa e agrado, respondi “Desculpe. Não o tinha visto” e aproximei-me. Cumprimentámo-nos com um efusivo aperto de mãos e como o gesto não se repetiu entre mim e o seu acompanhante, logo nos apresentou: “ O meu amigo Marques da Silva; Norberto, o nosso jovem poeta”. “Muito prazer”, saudámo-nos então, e entre os três fez-se aquele breve silêncio que nestas situações precede o arranque de nova conversa mas que, na minha inquietação, me pareceu uma eternidade. Quem o rompeu, aliviando-me, foi o Dr. Galvão. Elogiou-me perante o amigo pelo meu “Panorama da Cidade” (modesta sátira rimada sem pretensões a poesia…) e informou-o do meu prémio de “Poeta Estudante”. Com algum desencanto meu, Marques da Silva, que durante o encómio não tirara os olhos de mim, não se pronunciou de imediato sobre o que acabava de ouvir. “Tem graça — disse, olhando-me desta vez como a um retrato antigo — tenho quase a certeza de que já nos conhecemos de algum lado…”. O alarme soava agora mais forte na minha cabeça e, à defesa, respondi: “Deve ser impressão sua, porque não tenho a menor ideia…. Deve ser de tantas vezes passarmos um pelo outro na Rua de Santo António…”. “Nnaaão.” — Contrapôs ele, alongando os fonemas da negativa em sinal de forte convicção. E quase entrei em pânico. Salvou-me de novo o Dr. Galvão, que atalhou: “Bom. Seja como for, agora que estão apresentados, um dia destes tiram a dúvida”. “Sim, com certeza” — Corroborou Marques da Silva, e de novo me dirigiu a palavra: “Para já, tenho é de congratular-me e de felicitá-lo. Ainda bem que, finalmente, aparece um jovem com talento para a poesia…”. Calado, expectante, não reagi e ele prosseguiu: “Como sabe, o Cândido Guerreiro já faleceu, o Emiliano está velho e muito doente, e eu…. eu também para lá caminho. E seria uma grande pena se não surgissem outros para preencher o nosso lugar.”• Fiquei varado. Que petulância! Que lata! Colocar-se ao nível daqueles conhecidos e prestigiados poetas? Achar que ao lado deles tinha algum lugar? Engoli em silêncio o indirecto mas convencido auto elogio, mas não deixei passar a aparente ignorância do meu interlocutor. “Desculpe — contestei de modo cordial — mas está a esquecer-se de que só aqui em Faro temos o Casimiro de Brito, o Gastão Cruz e, acima de todos o Ramos Rosa, que também ainda é novo mas até no estrangeiro já é conhecido…”. Ele começou por franzir a testa. Depois, com um olhar de condescendente superioridade, comentou: “Pois… Mas aqui para nós, o que eles fazem já nem é poesia…” Foi demais para mim. O que logo me apeteceu foi revelar-lhe onde, quando e como, ele me conhecera. Até imaginei a cara dele feita um bolo e tive de mobilizar todas as minhas forças para converter o sádico impulso num inofensivo e enigmático sorriso.
Como acabou a conversa, já não lembro. Apenas recordo que durante algum tempo, sempre que ela me aflorava à memória, dizia para comigo: “Não há dúvida, Presunção e água benta, cada um toma a que quer”.

5 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Norberto.
Mais uma bela crónica com a sua assinatura e... "com muita presunção"
O Blog está sempre disponível para publicar os seus textos.
Um abraço
Rogério Coelho

Anónimo disse...

A verdade é que sempre ouvi referir o Dr. Medeiros Galvão como médico e não como advogado!...
Não será a mesma pessoa???

Anónimo disse...

De facto tem toda a razão.
Fiz uma troca de identidades ao referir-me ao Dr. Medeiros Galvão, médico,quando queria referir-me ao Dr. António Miguel Galvão, advogado.
Agradeço o reparo sobre a "gafe".
Norberto Cunha

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

…………………
Aproveito para lhe transmitir o meu reconhecimento pela sua paciência, dedicação e coragem ao manter-se ao leme do Blog, apesar das cíclicas recidivas do vírus que o perturba. De facto, o meu amigo tem dado provas de uma notável e louvável paciência... Um grande abraço. Norberto.
NOTA: - Com a devida autorização do signatário, publico este comentário escrito num mail pessoal que recebi.
Rogério Coelho

MAURÍCIO DOMINGUES disse...

CARO NORBERTO,

É RECONFORTANTE RECEBER PALAVRAS DE RECONHECIMENTO E
AMIZADE COMO ESTAS QUE O NORBERTO
DEDICA AO ROGÉRIO COELHO, PESSOA
QUE NÃO SE DEIXA VENCER FÁCILMENTE.

EM COMENTÁRIO JÁ PUBLICADO MANI-
FESTEI UM APOIO TOTAL AO BATALHADOR
QUE É O ROGÉRIO NA DEFESA DO NOSSO
BLOGUE, AO TER ACEITE CONTINUAR À
FRENTE DE "OS COSTELETAS", A SOLI-
CITAÇÃO DA DIRECÇÃO DA AAAECT!

".....A CARAVANA PASSOU " !

"PRESUNÇÃO E ÁGUA BENTA, CADA UM TOMA A QUE QUER"..
O NOSSO POETA USAVA-AS COM MUITA
DISTINÇÃO E BOM GOSTO, À MANEIRA
DOS ELEGANTES GENTLEMAN QUE SE
PASSEAVAM NA VÉLHA ALBION, ENQUAN-
TO ELE O FAZIA NA MAIS CONCORRIDA
RUA DA CIDADE DE FARO- A RUA DE STº ANTÓNIO.

NORBERTO, CONTINUE A RECORDAR-NOS
MAIS COISAS.

UM ABRAÇO DO MAURÍCIO