sábado, 30 de outubro de 2010

O VELHO E A GAIVOTA (cont)

CAPÍTULO II


II


Levei toda a semana nisto. Estava reformado, ia para onde queria, geria o tempo á minha maneira e comecei a frequentar a Biblioteca da cidade. Havia lá muitas pessoas na minha condição e jovens estudantes que tiravam apontamentos de livros completando assim os seus estudos.
Dirigi-me à zona dos jornais onde as pessoas estavam sentadas em volta de uma mesa ou em sofás e descobri que havia um lugar vago num de dois lugares só ocupado por um indivíduo que lia o jornal "Negócios" . Olhei para o senhor, que vestia bem e pensei que talvez tivesse sido Chefe de Repartição de Finanças e se fosse, teria aqui muitos problemas a explorar.
Peguei num jornal ao acaso e pedi licença ao cavalheiro para me sentar a seu lado.
- Faz favor, disse o tipo
A maneira como ele disse a expressão, pareceu-me que tinha um problema, talvez grande e aí estava eu nas minhas sete quintas, quando maior fosse o problema mais hipóteses eu tinha de acertar porque o naipe dos problemas que eu conhecia começava a alargar - se e eu ia-os ligando á conversa do velho. Ainda pensei em perguntar-lhe se estava zangado, mas vacilei, porque o homem poderia ter sido Oficial do Exército em vez de Chefe de Repartição de Finanças e poderia ser o diabo. Comecei a ler o jornal, mas aquilo não dava nada, e eu queria era saber se o meu camarada do lado tinha tido grandes desgostos ou grandes problemas, para que eu pudesse fazer a ponte com velho. Queria pegar-lhe por um lado qualquer, não sabia como, talvez perguntando-lhe as horas.
- O meu amigo tem horas que me diga, perguntei-lhe.
- Faltam dez minutos para o meio dia, disse ele. E sorriu.
- Pareço que o conheço, disse-lhe.
- Pode ser da Repartição de Finanças disse ele. Entra lá tanta gente. Qual é o bairro fiscal a que pertence? Perguntou agora.
- Eu pertenço ao nono.
- Pronto, é daí. Trabalhei na Repartição muitos anos e agora aposentei-me. Como se chama?
- Ismael Silva, às suas ordens.
- Ismael, Ismael, você tem um processo lá na repartição. Coisa pequena mas tem. Uma coisa que você não pagou.
- Mas eu paguei tudo, sempre a tempo e horas, como é possível?
- O seu nome completo é como?
- Ismael Silva Matos.
- Espere aí que eu vou ligar à Repartição.
O homem pegou no telemóvel, falou com o funcionário respectivo e depois disse:
-Tem razão, o outro, o que deve, chama-se Ismael Silva Martins. Sabe, eu tenho a mania que tenho os nomes todos na cabeça e depois falho. Peço-lhe desculpa.
-Não tem importância, disse eu. Já agora, o senhor como se chama?
- Francisco Guedes, ao seu dispor.
- Dr. Francisco Guedes, talvez, disse eu.
- Sim, sou licenciado em Direito, mas deixe lá o Dr. Não gosto muito, sabe. Sofri um bocado na vida, tive grandes problemas, a minha vida não foi fácil. Estudei sempre no curso nocturno e às vezes o dinheiro não me chegava para as despesas. E pedi emprestado. Ainda hoje sofro com isso.
- Não pagou o dinheiro que pediu emprestado' perguntei.
- È uma longa história, Falaremos disso outro dia, disse ele. Desculpe-me mas tenho de ir andando.
- Amanhã aqui às dez, sim, disse eu.
- Talvez.
E saiu apressadamente.


jbritosousa@sapo.pt

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