terça-feira, 30 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

Famílias Desavindas
Mário de Carvalho

Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há-de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta.

No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara um semáforo moderno, operado a energia eléctrica, capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade. A autoridade gostou do projecto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia. Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta (sempre se tratava de uma implantação experimental), acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na intersecção com a travessa de João Roiz Castelo Branco.

O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida uma melhoria. Uma inspecção da Câmara concluiu que a roda da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.

Houve muitos candidatos ao cargo de samaforeiro, embora um equívoco tivesse levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha pedalado na vida. Mas Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha foi acertada.
Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse.

Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a relação com o sinal. Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.

Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados.

Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido.

Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!» Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo.

Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e começava: «As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se viróticas, no segundo, bacterianas.» E estava horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.

Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo
por esticão um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado: «Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.»

Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no capítulo das «manchas de sangue».
Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do Sol, a accionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa.

IN Mário de Carvalho - Contos Vagabundos
2000

Colocado por Rogério Coelho

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

DOIS DEDOS DE PROSA
Por Norberto Cunha

APRESENTAÇÃO

Quando, ao folhear o seu jornal, os leitores deparam com o rosto e a prosa dum novo colaborador, por certo experimentam algo semelhante àquele misto de surpresa e expectativa que todos sentimos sempre que, em casa, recebemos uma visita inesperada. Em ambos os casos, a surpresa é tão-só a centelha do instante. Mas a expectativa do leitor é porta por ele entreaberta a uma nova convivência. E sendo a página escrita o espaço natural e imediato desse possível e específico “viver com”, compete àquele que a escreve transmutar em apetência, aprazimento e interesse, aquilo que, à partida, foi no outro que a lê, curiosidade espontânea e aposta cautelosa. É nesse sentido que hoje ensaio um primeiro passo, fazendo deste encontro inaugural o lugar e o momento para, antes de tudo, dizer algo sobre mim e ao que venho. Sou um farense “exilado” há quase cinquenta anos no concelho de Cascais, bancário aposentado, licenciado em Filosofia, que gosta de escrever e faz da escrita exercício vário, abrangente, onde a cidadania também cabe. Propus-me, e proponho-me, colaborar neste jornal com a intenção de partilhar ideias, opiniões, porventura um pouco do meu modesto saber, esperando dar assim um pequeno mas positivo contributo a uma publicação que a vários títulos o merece, inclusive por se tratar de um média que — a par com o seu desempenho de porta-voz do S.C.O. — pela sua história, prestígio e vitalidade, se vem afirmando como sólido baluarte da imprensa regional. Move-me também o intuito de restaurar, ainda que à distância, uma antiga relação de boa vizinhança, de reatar um contacto permanente com gentes de Olhão. Propósito feliz, desde logo premiado com um bom augúrio. Antes de me imaginar escrevendo estas linhas, já um primeiro e gratificante reencontro (por ora apenas verbal, mas reencontro) acontecia entre dois “velhos” conhecidos: o olhanense Mário Proença e eu. De novo lhe agradeço o pronto e afável acolhimento à minha pretensão. Quanto aos temas e ocorrências que terei por objecto, adianto que se inscrevem prioritariamente nos domínios da cultura (artes, ciências, história) e da vida social e política. A opção em cada momento obedecerá, na medida do possível, a um critério de oportunidade. Dito isto, deveria, talvez, ficar por aqui, atendendo a que, enquanto veículo duma apresentação, este texto já cumpriu o seu percurso. Porém, presumindo que ao vir a lume, ao interpelar os leitores, poderá ser recebido com a mesma atenção que dispensamos à visita inesperada, então não posso dar por findos, a visita e o texto, sem retribuir a amabilidade dos seus anfitriões. E faço-o deixando-lhes uma pequena e simbólica prenda, na forma de um apontamento sobre a Ria Formosa. Refere-se a um local determinado, mas poderia ter por referente qualquer outro, de quantos, idênticos, dela são parte:

Preia-Mar no Ancão

O pino da tarde é o momento.
Lânguida, verde e transparente
a toalha oceânica
renova a posse inteira, soberana
e amante sobre a Ria.

Com ternura,
deita-se já nas ilhotas rasas
do sapal
e carícias imprime
no cálido lençol dos louros areais

Misturam-se odores.
Terra de sal irrigada
eflúvios de cardo e trovisco
limos e murraça
tojos, pinho.
Erótico perfume.

É agora.
Cessou o trotar de caranguejos
o compasso da babugem
a tensão nas amarras
e a deriva dos barcos
o voo das aves
o percutir de insectos
o rumor da brisa.

No deslumbre
do olhar aprisionado
repousada e soberba
a líquida e límpida planura•
aí está, enfim•
em toda a extensão•
da sua fecundidade
em toda a grandeza
da sua imponente quietude.
Agora tudo é uno, inteiro
completo
perfeito.

Em êxtase•
rendido ao pleno da maré
detém-se o universo.
Só o sentir se move•
e a memória guarda.
Não são mais•
que saudade antecipada
ocaso deste instante mágico
e único sempre.

Obviamente,
nunca o cronista bíblico
se aventurou por esta estreita
remota e ignota faixa do paraíso.
Mas sem ela, sem estes aromas
esta luz, esta paisagem•
este momento sublime•
Éden algum alcançará a completude

IN Norberto Cunha - Jornal "o Olhanense"
2010

Colocado por Rogério Coelho
FIQUEI SATISFEITO,
Por João Brito Sousa


Com os comentários ao meu texto, "O costeleta do ano", por ser uma matéria delicada e concordo com o que diz o Montinho nos seus comentários.

Nunca procurei outra coisa que não fosse a unidade dentro do Universo costeleta. Mantenho tudo o que disse no texto já publicado "O costeleta do ano".

E aí vão as adendas.

DIOGO COSTA SOUSA - Merecia figurar no primeiro texto e não figurou por lapso, como todos. O DCS é um costeleta de carácter, homem de princípios, estudioso, sendo as suas matérias preferidas a História e a Política. É um homem organizado, não dá um passo em falso, o que diz ou escreve é cientificamente correcto. É um homem lógico.

ALFREDO MINGAU - Tem grande apoio e muitos admiradores no blogue. E isso quer dizer alguma coisa. É um homem que gostava de conhecer, porque, apesar de nem sempre termos estado em sintonia, gostava de estar perto dele. Todavia, não tenho o direito de não o incluir nestas notas, apenas por esse facto. O que conta aqui é o comportamento ético da pessoa. E, apesar de ser um anónimo, com o que não concordo, o Alfredo disse não quando era não e disse sim, uma vez ou outra, quando era sim. Disse-me coisas duras convencido da sua razão. Aceitei sempre ouvi-lo, por dois motivos; porque sempre gostei de ouvir os outros e porque me parece ser um homem que utiliza a verdade como a sua brincadeira preferida. E esta, como diz Bernardo Show, é mais linda brincadeira do mundo. A sua forma de escrever é muito apreciada no blogue. É para continuar.

ZÉ PAIXÃO - Essas histórias dos bailes em Santa Bárbara de Nexe, Gorjões, Vilarinhos, Estói e por aí fora, where are? Zé, eu pertenci ao team RASGA A MANTA ... portanto, nada mais. És o exemplo. Um abraço special.

MARIA JOSÉ FRAQUEZA - Imperdoável não ter falado nela no outro texto. Mas digo tudo se não disser mais nada. Porque é uma costeleta de enorme talento e prestígio.


Voltarei, se estas opiniões forem entendidas como válidas.

Até lá, um abraço do

jbritosousa@sapo.pt

PONTO DE ENCONTRO

Identifiquei-me com a crónica que em anexo envio e não quiz deixar de partilhar com outros que eventualmente também venham a gostar.

Ferreira Borges

Ganhei coragem …
“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”, observou Nietzsche.
É o meu caso.
Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo.
Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega:
“Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”.
Tardiamente.
Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem.
Vou dizer aquilo sobre o que me calei:
“O povo unido jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo.
Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem politica. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu lugar:
A democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio;
O facto é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere.
A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos.
Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direcções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.
E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava!
Mas ela tinha outras ideias. Amava a prostituição.
Pulava de amante em amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou.
Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu?
Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora serás minha para sempre”.
Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus.
Deus era o amante apaixonado.
O povo era a prostituta.
Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável .
O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras.
As mentiras são doces;
A verdade é amarga.
Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo.
O circo cristão era diferente: Judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.
Reinhold Niebuhr ,teólogo moral protestante, no seu livro “O Homem Moral e a Sociedade Imoral” Observa que os indivíduos isolados, têm consciência, são seres morais. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas.
Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos actos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da claque de um clube rival.
Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.
Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da colectividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia.
Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e as democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições dizem quem é o artista que produz a imagens mais sedutoras.
O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à colectividade.
Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham.
Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo.
Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a revolução cultural, na China de Mão-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.
O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava Führer.
O povo unido jamais será vencido!
Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas que posso fazer?
Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; Não gosto de churrasco, não gosto de Rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol.
Tenho medo de que num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos, a engolir sapos e brincar de “boca-de-forno”, à semelhança do que aconteceu na China.
De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro de verifique é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando e cantando e seguindo a canção.”, isso é tarefa para os artistas e educadores.
O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

Rubem Alves
Colunista da Folha de São Paulo

OUTROS AUTORES

"Faro è là minuta"

Rua de Santo António

Lina Vedes

Nos anos 40/50 vivíamos como se o coração da cidade concentrasse na parte velha, em todo o espaço definido entre muralhas, e a alma na Rua de Santo António e ruelas que nela desembocam.
Era a principal rua da cidade, a rua das lojas, o centro comercial, o passeio público, o ponto de encontro de amigos.
Toda a população convergia para a Rua de Santo António onde se encontravam os estabelecimentos que vendiam os produtos essenciais à vida, e passeava, da Pontinha ao Jardim, trocando palavras de afecto ou maldizentes .•
Um olhar clínico de observador atento descobriria na rua principal de Faro, humanamente bem recheada, mulheres na azáfama das compras, intervalando-as com conversas de amigas, e homens de chapéu na cabeça, cavaqueando nas esplanadas dos cafés ou à Pontinha, local de concentração da boa e má-língua.
De tarde, após a saída das aulas, grupos de estudantes impunham à rua nova pintura, com alguns rapazes vestidos com as negras capas e batinas.
Pés encostados à parede fixavam-se ao pé da Artys, à Pontinha, perto do Banco Ultramarino e do Cinema, na Gardy, espreitando e comentando sobre os grupos de raparigas que num vai vem constante subiam e desciam a rua.
Vivia-se sob o signo da castidade, considerando-se que amar era impróprio. A sociedade impingia uma educação rígida com obediência intransigente, que bania por completo a carícia ou o beijo, "queimando" a rapariga que permitisse tal libertinagem. Os rapazes corriam o perigo de ser obrigados a casar ou punidos com prisão, se uma jovem de menor idade aparecesse desonrada ou grávida, culpabilizando-o.
Os jovens dessa época viviam "entalados" entre a realidade imposta e o próprio sonho ...
Disfarçavam a curiosidade mórbida, a frustração, a impossibilidade de contactos, observando-se e deixando-se observar. Os rapazes, fixos num sítio estratégico, as raparigas cirandando a mostrar-se, mascarando as verdadeiras intenções.
Éramos adolescentes e parecíamos uma verdadeira "praga" (temporária) ... A nossa sensibilidade descontrolada levava-nos a ser insolentes e grosseiros, atingindo o exagero, porque os nossos inibidores não estavam ainda ajustados.
Fazíamos julgamentos rígidos, mordazes, implacáveis, tirávamos conclusões precipitadas, respondíamos bruscamente sem qualquer tipo de tolerância.
Fazendo análise a esta fase da vida, comum a todos os humanos, compreendo como no meu tempo participei em acções impensáveis e imperdoáveis.
Na Rua de Santo António existia uma tipografia pertencente ao Sr. Serafim, que se situava onde hoje é a Palloran, fazendo canto para a Travessa Vouzela.
Uma amiga de Liceu, a Inês, ao consultar os Anais da Câmara Municipal de Faro de 1988, na página 108, descobriu, por casualidade, a indicação de um Eduardo Serafim, residente na Sé, com 48 anos, dono de uma tipografia, que entre 1899-1901, foi membro da Vereação Camarária (substituto). Logicamente, chegamos à conclusão que tal individuo teria sido pai do Serafim que nos aparecia na frente em 1955, a saber dos nossos desejos.
Aparecia o proprietário, atencioso, discreto, de frágil estatura, arrastando os pés como quem carrega um enorme e pesado fardo. O casarão de trabalho era enorme, fundo e escuro, cheirando terrivelmente a bafio, emprestando ao alfaiate um pouco desse odor...

Alojado dentro das calças subidas até ao peito e amarradas por um cinto de cabedal, via-se um enorme vulto parecendo uma almofada colocada entre as pernas.
Os nossos olhos brilhavam de gozo ... (que doença seria ...) e quando o Sr. Serafim nos perguntava, delicadamente, falando "axim":
- O que "dejejeam" as meninas?
- Xô ... xa ... rafim ... tem postais ilustrados?!!!!!
Saíamos porta fora sem saber qual a resposta.
Nos anos 40 iam à tipografia comprar bacalhau e nos 30, o Serafim filho, frequentador de aulas de músi6a, era alvo de diversas brincadeiras. Urinavam-lhe na flauta e ao colocar os lábios para tocar, exclamava:
- Quem deitou "xumo" de limão nos "orifixios" da flauta?
Existia outra vítima das nossas brincadeiras, na Rua de Santo António, o Coelho alfaiate, cuja loja ficava quase na frente da tipografia, um pouco mais para baixo, onde hoje é o António Manuel.
Este alfaiate era o inverso do tipógrafo.
De estatura franzina, com óculos metálicos e redondos assentes na ponta do nariz enquanto trabalhava, olhar de águia, afastava qualquer tipo de diálogo, impelindo-nos para a "partida".
Todas as tardes, à saída das aulas, entrávamos na tipografia que fornecia lindos postais ilustrados sobre 2l cidade de Faro e seus arredores.
Ao entrarmos, uma campainha suspensa na porta sinalizava- nos.
Tinha uma porta de acesso e uma ampla janela de peito a pouca altura do chão, que permitia ver todo o interior.
A meio da sala uma bancada de trabalho para marcar e cortar os cortes de fato e outra para passar a ferro que, quando utilizada, fumava por todos os lados.
O chão da casa com ripas de madeira podre rangia quando pisado.
Nunca vi luz acesa neste estabelecimento e para poder trabalhar o Coelho sentava-se à janela, numa cadeira baixa, aproveitando a claridade do dia.
Cosia colocando a roupa colada ao nariz.
Nós, ao passarmos no passeio da rua, junto da janela, metíamos o braço e dávamos uma forte "caqueirada" na cabeça do Coelho. Acontecia, às vezes, três ou quatro de seguida, à medida que caminhávamos umas atrás das outras.
Quando o alfaiate conseguia levantar-se e aparecer à janela, a injuriar-nos, já íamos longe, rindo da patifaria.
Onde hoje é a Zara (na parte da R. 1° de Dezembro) existia a Terçanaval, casa que vendia apetrechos de pesca, âncoras, roldanas, candeeiros de petróleo, "bombas" para matar insectos (uma maquineta cilíndrica com um êmbolo tendo por baixo um reservatório com o insecticida) '" O proprietário, todo elegante, parecia aos nossos olhos um indivíduo de vaidade extrema. Para se sentar "rapava" de um lenço de algibeira e sacudia com ele o assento da cadeira com receio de se sujar. Era o "cuzinho de veludo".
As lojas da R. de Santo António e D. Francisco Gomes seguiam-se umas às outras à esquerda e direita, com passeios para peões e trânsito ascendente, circulando ao centro. As camionetas da carreira para Olhão passavam por ali, obrigando os transeuntes a serem cuidadosos. Marcavam presença nestas ruas as farmácias Baptista, Graça Mira e a do Montepio; o Dr. Guerreirinho, perto da Gardy, com o seu consultório, os fotógrafos Correia e o Helder, a ourivesaria Bomba, o oculista Graça, o Farracha dos jornais, as decorações e mobílias da Casa Nobre, as louças do Carvalhinho, as tabacarias Pires e Sancho Lda. e a do Janeiro, a espingardaria Fazenda, o stand Pardal, o Cine Teatro Farense com a gerência do poeta, intensamente snob, Alberto Marques da Silva, conhecido por "marmelada", com o seu cravo vermelho na l'apela do casaco, o Clube Farense só para gente da "alta", o Ginásio por cima do Banco Espírito Santo e perto, na Rua 1° de Dezembro, a Casa das noivas, a padaria da família Costa, a Fiat ." e outras que poderão ter caído no esquecimento... A completar este enorme centro comercial da baixa farense, não há que esquecer as mercearias Gago e Aliança (com o hotel, café e bilhar) do Sr. José Pedro da Silva, o café Atlântico (em 1952 substituiu o Central), com uma linda sereia, em baixo relevo, numa dos paredes, a Gardy, a Brasileira, a Brasília do Sr. Marcelino, com bilhar, tendo a Pensão Sota no 1° andar.
Existia ainda a Pensão Luísa, pertencente à mãe do campeão de luta livre José Luís, que ficava por cima do Helder fotógrafo, onde hoje é o restaurante Chelsea. Ao lado, fazendo canto, tal como na actualidade, a casa dos bidés Pinto substituída, posteriormente, pela Lusbel (casa da borracha) e depois a Sayonara. A meio da rua, à esquerda de quem sobe, havia outro estabelecimento idêntico, a Fábrica Lusitânia.
Consigo visionar mais estabelecimentos como as sapatarias Cibele, a Atlas do Serpa, cujo empregado, o Sr. Ferro, era bastante simpático e empenhado.
As lojas de roupas vendiam tecidos a metros (não havia pronto a vestir), englobando artigos de retrosaria. Recordo a Labor e o Sr. Abel, balconista excepcional que vinha diariamente de Olhão, a casa Tabu cujo 1° proprietário, o Sr. Arbués, possuidor de uma "senhora barriga" de respeito, a passou ao Lopes, a casa Rodrigues com artigos de bom gosto e "de primeira", a casa Rosa e a Verde (restaurada em 1955) com óptimos empregados, o Sr. Machado, o Sr. Monteiro, o Sr. Gaspar e o Sr. Santos; a casa Carminhos do Fernando e do Virgílio, filhos da viúva Carminho, com loja na R. Filipe Alistão...
Não poderei deixar de focar os tecidos vendidos na Rua Tenente Valadim (rua dos Cavalos) nas casas Estevinha e Salomé, os electrodomésticos do Calapés, o Trindade (casa dos cestos), o correeiro Porto, os bilhares Olímpico, a cervejaria Aquário, a pastelaria Baleizão (Biju), o restaurante Flórida, as ourivesarias Seruca, o Alho, o Alhinho, o oculista Serra...
Recordo ainda as agências bancárias, Nacional Ultramarino, Algarve, Espírito Santo e a Caixa Geral de Depósitos construída em 1947, depois de acesa polémica comprovada num artigo do semanário Correio do Sul, que dizia o seguinte:

Quem manda em Faro?
“O Sr. Presidente da Câmara Municipal de Faro, numa entrevista recentemente concedida, não hesitou em qualificar de péssima a solução de se construir a filial da Caixa Geral de Depósitos à esquina da rua de D. Francisco Gomes.
Disse mais que ela tinha a franca e aberta antipatia da cidade inteira - o que, em boa verdade, já sabíamos - e esclareceu que tal localização não foi proposta pelo autor do plano de urbanização que, não só a não preconiza, mas até dela discorda.
Dela discordam também a Liga dos Amigos de Faro, a Comissão Municipal de Turismo, o Grémio do Comércio de Faro e várias outras entidades .•
Por que se persista então na triste ideia, ocorre muito naturalmente perguntar.
Que direitos se arroga a Caixa para impor à capital alarvia uma solução que todos repudiam
Quem manda em Faro?
Correio do Sul- 27 de Março de 1947

Quem manda em Faro?

Nos prédios derrubados para a construção da Caixa Geral de Depósitos existiam, no rés-do-chão, a casa de móveis Vieira, a mercearia "Casa Inglesa" e, dando para o Jardim, além de outros estabelecimentos, uma geladaria. No 1° andar era a residência e hospedaria de João Sota que a situou, posteriormente, por cima dos restaurantes Brasília e Cabaz da Fruta, que pegava com o Aliança.
Continuando, não esqueço as lojas que mais frequentava: as papelarias e livrarias do Sr. Silva, que transpirava honestidade, respeito e segurança, com secção de fotografia e brinquedos, a Académica, a do Alberto Capela e a Artys em frente à Brasileira. Na Artys, o pagamento mensal da despesa permitia-me levar artigos não de estudo mas de interesse pessoal. Lembro-me de ter comprado "A nossa vida sexual" de Fritz Kahn como se se tratasse de um livro de Filosofia.
Também recordo com simpatia a casa das telefonias Telefunken, do Arcanjo, que nós cravávamos pedindo para levar um transistor (grande novidade da época) à experiência, para que a mãe o comprasse posteriormente. Durante muito tempo, porque éramos muitas, ouvíamos deliciadas, música gratuitamente. Claro que nunca surgiu a possibilidade da compra!
Ao anoitecer a Rua das Lojas animava-se com gente que ia ao cinema e ao café. Figuras marcantes do comércio, da arte e da política entretinham-se, noite fora, desenrolando as suas oratórias...
Traziam "à baila" todos os acontecimentos políticos marcantes, discutiam sobre os perigos provocados pelos veículos, que circulavam a velocidades excessivas em artérias estreitas colocando os peões em risco... quando ainda não havia epidemia de veículos motorizados e os peões andavam pelas ruas sem preocupações especiais...
Ornamentando a rua não faltavam figuras curiosas pelas "baldas", invulgares e extravagantes, como o Zezinho Beirão, rodeado de gatos e com o inseparável "Pepito", cão acrobata, que fazia a delícia da pequenada ao tentar apanhar a bolacha, presa por um fio suspenso numa cana de pesca. Matou-se o Zezinho quando, com idade avançada, o internaram num albergue...
Um grupo de engraxadores, na altura do Carnaval, vestia o colega "Marrequinho" de bebé, com uma touca na cabeça e uma chupa de pano na boca, metiam-no num carrinho e desfilavam com ele na Rua de Santo António pedindo dinheiro, que seria gasto nos "copos". Uma vez lembraram-se de o mascarar de gorila. Pintaram-no com tinta preta, vestiram-no com uma tanga de tecido peludo e meteram-no numa jaula. A tinta e o tecido provocaram tal alergia no "Marrequinho" que se despiu, ficando nu dentro da jaula.
Curioso de se ver, pela rua, era a maneira de agir dos ardinas.
Em correria desde a estação do caminho-de-ferro, tentavam ser os primeiros a trazer os jornais do dia. Alguns tinham os clientes certos e iam entregá-los porta a porta. Lembro o Fausto, o Mefa, o Macarrão, o Chico Beiçudo, o Joaquim cabecinha à banda, o João Pírula, o Larguito, os irmãos Albino e os conhecidos Pardal e Vieguinhas.
Vendedores ambulantes colocados em lugares escolhidos, vendiam sorvetes no Verão a 5 tostões (tão chorados junto da mãe) … ou a dez tostões um "mola abaixo", em dia de festa. De Inverno apareciam com castanhas assadas e pinhões torrados (vitamina P) abertos com um prego, o que nos entretinha durante longo tempo. Desses poderei recordar o José Martins, o Chico do Gambozino de Lagos, o Manuel conhecido por "Ruço", malcriado, e com os dedos das mãos cheios de anéis de ouro...
Para mim, o prazer máximo acontecia, quando na chegada do Outono, a rua ficava impregnada com o cheiro da castanha assada!
Ainda hoje, na altura em que os dias estão a minguar e entro na rua pela Tenente Valadim sinto, intensamente, o cheiro da castanha assada a levar-me aos tempos de menina e moça...
As narinas dilatam de prazer e de nostalgia!!!!!!
E sinto que o fim da VIDA não é a excelência, mas o sabermos encontrar a FELICIDADE!!!!!!!!!!!!!!!

IN Lina Vedes – “Faro à lá minuta”
Crónicas na 1ª pessoa - 2010

Colocado por Rogério Coelho
(NOTA: Dado o tempo que levou a digitalizar esta crónica, pela sua grande extensão, chamo a atenção para qualquer "gralha" que possa existir, com as minhas desculpas antecipadas à autora Lina Vedes, que autorizou a publicação no nosso Blogue)
O COSTELETA DO ANO É ...
Por João Brito Sousa


Não sei se faz sentido trazer aqui alguns nomes de costeletas que, pela sua postura, dedicação, tolerância e amizade ao blogue, disseram presente e fizeram coisas. Vou citar alguns nomes e nomear um. Sem ofensa, claro.

Aí vão:

ROGÉRIO COELHO - Intocável no seu posto. Dedicação, trabalho, paciência e competência. Fez o que pôde e bem. Está de pedra e cal. Por mim, tudo o que o blogue tem de bom e mau, passa por ele.

OUTROS:

JOÃO LEAL, deixou o seu cunho de jornalista, claramente, onde é realmente bom. Mas pode dar um bocadinho mais. Tantas histórias que ele sabe da cidade e não nos deu o prazer de com elas nos deliciarmos. João, por favor, uma de vez em quando, ok.

JORGE TAVARES - Grande fervor costeleta e muito exigente nos seus trabalhos. Pede-se mais regularidade porque tem potencial. E sabe.

ANTÓNIO ENCARNAÇÃO - O símbolo da dedicação. Fez os artigos que tinha que fazer; nem um a mais nem um a menos. Pede-se que mantenha a qualidade e regularidade.

JOSÉ ELIAS MORENO - Impecável a sua colaboração. Capacidade de crítica impressionante. Favor aumentar um pouco a produção de artigos. Prosador e poeta, dos bons.

MAURÍCIO SEVERO - O velho combatente é indispensável. Uma velha glória.
Sempre atento. Não é não; sim é sim. Chama-se a isto coerência.

ANTÓNIO PALMEIRO - O seu espaço está garantido. È só voltar.

ORLANDO AUGUSTO - Um pouco mais de proximidade ao blogue seria óptimo. Porque tem bons trabalhos. E o blogue precisa desse ar poético.

MARIA ROMANA - Boa colaboração.

MANEL INOCÊNCIO COSTA - Poeta e caçador. É um blogista que se dedica. Acho que está bem

NORBERTO CUNHA - Uma excelente aquisição vinda do jornal "oscosteletas". Pela sua dedicação, competência, sabedoria, ponderação e sentir costeleta, é um dos bons colaboradores, que merecia estar perto do Rogério para decisões de longo alcance, no sentido da melhoria do blogue. É O COSTELETA DO ANO.

ALBERTO ROCHA - Imprescindível na sua crítica construtiva.

Um abraço para todos.

jbritosousa@sapo.pt

domingo, 28 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

As Minhas Férias
Jacinto Lucas Pires


As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas.
As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé.

Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri-se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles.

In Jacinto Lucas Pires - Abre para cá,
2000

Colocado por Rogério Coelho

sábado, 27 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

Revolução
José Gomes Ferreira

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher:
- 0 Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas…
Refilo, rabugento:
- Hã? (...)
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
- Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
- Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço:
- Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo). São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! (...)
A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório».
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... 0 povo é quem mais ordena...
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»).
Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.
A Maria Keil telefonou. 0 Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! (...)
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (...)
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.

IN José Gomes Ferreira – Viagem do Século Vinte em Mim
1983

PARABÉNS A VOCÊ



ANIVERSÁRIO DE ASSOCIADOS
EM DEZEMBRO

01 - Bertília Maria Rilhó Sousa Rodrigues Pereira. 02 - Esmeralda M.M. Carmo Bolas Soares. 03 - João Sabino Ladeira 04 - Alberto Afonso Cavaco; Olinda Maria Revés Celestino Lino Torres; Rosália da Conceição Correia Fernandes dos Santos; Maria Vitória Ramos Raposinho Rosa da Cunha; Ana Bela Soares de Mendonça da Silva. 05 – Maria do Carmo Santos Cabrita Oliveira 06 - Manuel Martins Felizardo. 08 - José Conceição Mendonça Contreiras; Eduardo Concei-ção Pires; Maria Amélia C. Sebarrinha D. Fernandes; Francisco Gago Assunção; Rosélia Conceição Correia Fernandes Tomás; Tomé da Conceição Apolo; Manuela Conceição Verissimo Bernardo Cavaco. 09 – Rosa Maria Machado Mar-tins. 10 - Maria de Fátima Ferro da Costa; Olinda Maria Grade da Silva. 11 - Vítor Manuel Gomes Palma. 12 - Ângelo Leal Costa; Valdemiro Pinheiro Bispo. 15 - Maria Filipe Vieira Sousa Guerreiro; Manuel Justino da Conceição Pedro. 17 - António Bota Filipe Viegas; António José da Silva Martinho. 18 - Cândida Maria do Livramento; 19 - César Vieira Silva Nobre. 20 - Sandra Maria Machado Fonseca; Maria Adelina Guita dos Santos Dias Neto. 21 - José Maria Carvalho Bernardo; José Jesus Bacalhau; Ângelo Gonçalves Silva. 22 - Rosa Maria Guerreiro Custódio; Dr. Afonso Joaquim Baptista. 23 - José Mateus Ferrinho Pedro; Vidal Rosário Tenazinha Prudêncio. 24 - Maria Manuela Pereira Magalhães. 25 - Maria Bertina Baptista Domingos Mendonça. 26 - Manuel Silo Graça Caetano; Filipe Vieira; Rui Gordinho Rebocho. 27 - Manuel Estêvão Rosa Gonçalves; Isilda Maria Guerreiro Cavaco Brás. 28 - Herculano Luís Martins Vieira; José Alberto de Brito Pereira. Maria Conceição Vasques Estrela Silva Abreu; 29 - João Jorge Carmo Tavares; Jorge Grade Cachaço; Simplício Pereira Araújo. 30 - João Manuel Brito Sousa; Célia Maria dos Santos Reis Branco. 31 - Joaquim do Serro Custodinho; Isabel Maria da Conceição Rufino Faustino.

Colocado por Rogério Coelho
CONTO DE NATAL 

Numa sombria tarde de Dezembro
A tiritar de frio, ia um velhinho,
Caminhava ao acaso, eu me lembro,
Sem ter nenhum abrigo, o pobrezinho!

o corpo entorpecido e mal tratado
Ia sendo impelido pelo vento,
Caía a cada instante e magoado
Exprimia o difícil sofrimento!

Uma casa em ruínas encontrava
Onde, apenas, dormia um débil cão;
O homem sobre "andrajos" se deitava,
Ouvindo, ali, chorar seu coração!

E dele o animal se aproximou,
E com carinho, deu-lhe o seu amor,
Depois ao ancião se aconchegou
Para que os dois sentissem mais calor

A noite de Natal triste, vazia ...
 Em plena escuridão, sem qualquer bem!
Mas sobre a madrugada ... então havia
Mantimentos ... deixados por alguém!

Maria Romana

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

LANÇAMENTO DE LIVRO

VILA  ADENTRO
O Espirito do Lugar

Hoje, 26 de Novembro de 2010, pelas 18 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Faro, sessão presidida pelo Presidente Engº Macário Correia, foi apresentado o livro Vila Adentro - O Espirito do Lugar. Uma edição da Escola Secundária de Tomás Cabreira. A obra apresentada é da coordenação das Professoras Rosa Trindade e Dulce Bulha, com desenhos artisticos e fotografias dos alunos do Curso Cientifico-humanistico de Artes Visuais dos 11º e 12º anos e da professora Dulce Bulha.
O Design Gráfico - Pesquisa Histórica - Textos de Toponímia pelos alunos do 12º ano e Professoras Rosa Trindade e Dulce Bulha.
Um belo livro com capa e contra capa da autoria destas duas Professoras.

A mesa

O livro

Pormenor
"Andei na escola primária, junto da judiciária, na rua Rasquinho, a antiga rua dos Cónegos.
No nº 23 viviam as condessas, num palacete côr de rosa, com a inscrição do ano 1881, no ferro e no mármore."
Madalena Guerreiro
O palacete côr de rosa 
Desenho: Filipa Martins

Colocado por Rogério Coelho

OUTROS AUTORES

Vinte Cinco a Sete Vozes - 5ª Voz

Alice Vieira

Olhe que foi mesmo por acaso! Quando saí de casa, nem pensava em passar por aqui. Mas depois tive de ir ali ao Montepio levantar a minha pensão, e lembrei-me de dar uma palavrinha ao Paulito. Para mim ele há-de ser sempre o Paulito... Olhe que foi dos melhores alunos que eu tive! Uma pena não ter continuado a estudar, uma pena! Se fosse hoje, nada disso tinha acontecido, mas naquele tempo... E eu lembro-me que a família dele passava muitas dificuldades, o pai ora estava empregado ora desempregado, e além disso sofria do coração, havia dias que quase nem se podia mexer. A gente bem lhe dizia para ele ir ao médico, mas onde é que havia médico, e onde é que havia dinheiro para médico. «Isto é tudo nervos», dizia ele. Só quando morreu é que se soube que era do coração que sofria.
Mas então a nossa conversa vai ser sobre o 25 de Abril de 1974, não é? Nessa altura eu já não estava na escola onde o Paulo andou, tinha sido colocada mais cá para baixo, numa aldeia chamada Vale de Mu, lá para a serra do Caldeirão. Aquilo era uma terra onde não havia nada, nem vinha no mapa, a escola não tinha condições nenhumas, mas nenhumas! Agora já estou reformada, como deve calcular, mas quando ainda estava no activo e ouvia colegas meus queixarem-se das más condições das escolas onde ensinavam, só tinha vontade de os levar a Vale de Mu para eles verem o que era uma escola degradada. Não que as nossas escolas de agora estejam todas bem, não é isso, mas comparadas com a de Vale de Mu são o paraíso! Se calhar essa escola hoje até já nem existe, se calhar até já fechou, como tantas por esse país fora.
Como já referi a escola não tinha nada. E quando eu digo nada, é nada mesmo. Olhe que nem sequer o retrato do Américo Tomás e do Marcelo Caetano ela tinha! A menina é muito nova, e se calhar não sabe estas coisas, mas antes do 25 de Abril todas as escolas primárias... Agora elas já não se chamam assim, acho que se chamam escolas do ensino básico, mas para mim continuam sempre a ser escolas primárias! Mas dizia eu que todas as escolas tinham na parede o retrato do presidente da República e do presidente do Conselho. Eu ainda apanhei escolas com o retrato do Carmona, depois o Carmona morreu e veio o retrato do Craveiro Lopes, que foi o presidente a seguir, e depois o do Américo Tomás, que foi o que esteve até ao 25 de Abril, como a menina sabe. Ao lado do retrato do presidente da República, estava sempre o retrato do Salazar, que foi presidente do Conselho mais de quarenta anos. Um dia, em 1969, como a menina também deve saber, o Salazar caiu de uma cadeira abaixo, bateu com a cabeça no chão e teve de ser substituído pelo Marcelo Caetano, que ficou até ao 25 de Abril. Isto em traços muito largos, claro, porque pelo meio houve histórias e mais histórias, mas agora não vêm ao caso.
Pois lá em Vale de Mu nem o retrato do Marcelo Caetano nem o do Américo Tomás havia. Nem isso, que o Ministério queria sempre que não faltasse, para os meninos saberem logo de pequeninos quem é que mandava em todos!
Não é que os retratos dos homens me fizessem falta, quanto menos olhasse para eles, melhor. Mas isto é só para a menina ver como aquela escola era desprezada. Olhe que não havia um pau de giz! Nem sequer o mapa de Portugal! Eu queria dar aritmética e geometria, e nem uma caixa com os pesos ou com as figuras geométricas lá havia, como havia noutras escolas. Nada. O que se chama nada.
Então eu, pacientemente, escrevia todos os meses uma carta ao Ministério e explicava que a escola não tinha material, e sem material como é que eu podia ensinar as crianças, e lá dizia também, para ver se os comovia, que a escola nem os retratos do senhor presidente da República e do senhor presidente do Conselho tinha nas paredes, e que era uma vergonha para o país uma escola naquele estado, santo Deus.
E do Ministério, nada. O silêncio mais completo.
E lá vinha outro mês, e lá voltava eu a escrever para o Ministério, a mandar ofícios, a fazer pedidos a toda a gente – e do Ministério apenas o silêncio.
Foram anos terríveis. Eu já não sabia como inventar maneiras de ensinar os miúdos. Já viu como é que se ensina Geografia de Portugal sem um mapa? Ensinar-lhes as serras, os rios, as linhas de caminho-de-ferro – sem lhes mostrar no mapa onde ficavam? Coitadinhos, eles sabiam tudo de cor, mas não faziam a mínima ideia onde é que tudo aquilo era! E o meu ordenado, claro, tão pequeno que nem dava para pagar o material do meu bolso. Ainda paguei muitos paus de giz, e um apagador para o quadro, e alguns cadernos para aqueles que não tinham mesmo possibilidades nenhumas, mas não podia ir muito além disso. Tinha dois filhos para criar, e fiquei viúva muito cedo, como o Paulo lhe deve ter dito. A vida era muito difícil também para mim.
Mas nunca desisti. Todos os meses lá ia a carta para o Ministério. Isto durante anos! Só em selos devo ter gasto uma pequena fortuna!
Até que um dia, já eu desesperava de tudo, aparece-me junto da escola uma carrinha, a trazer, finalmente, material que o Ministério mandava. Só não deitei foguetes porque não os tinha, mas senti-me rebentar de felicidade. Até que enfim eu ia poder ser uma professora a sério! Estava tão feliz, mas tão feliz, que nem estranhei a pressa que o chofer tinha em despachar aquilo, e nem liguei, quando ele disse que em Lisboa tinha havido qualquer coisa esquisita, tinha encontrado muita tropa na rua quando de lá saíra, e aquilo não lhe parecera normal.
Acho mesmo que nem ouvi bem o que ele disse. O que eu queria era abrir os pacotes, ver o material, colocá-lo na sala, e poder dar, finalmente, uma aula decente às crianças.
A menina até pode nem acreditar, porque esta história parece mentira, mas juro que foi assim mesmo que aconteceu: a senhora Aurora, que era quem limpava a escola, a chegar ao pé de mim e a dizer que na rádio se falava de uma revolução, de um Movimento das Forças Armadas que tinha ido prender o governo todo, e eu a abrir os pacotes cheia de alegria, e a dar de caras com os retratos do Américo Tomás e do Marcelo Caetano! Nem um pau de giz, nem um mapa, nem formas geométricas, nada de nada, a não ser os retratos daqueles dois para pendurar na parede. A senhora Aurora, coitada, aflitíssima, «senhora Professora, há uma revolução em Lisboa!», e eu a olhar para os retratos no chão e a pensar, «e agora, o que é que eu faço com estes dois?»
Ainda hoje, que já se passaram 25 anos, de cada vez que vejo, na televisão, documentários sobre o 25 de Abril, com o chaimite que levou o Marcelo Caetano e o Américo Tomás do Quartel do Carmo, só me lembro do retrato deles, no chão, à entrada da escola, e do meu espanto no meio de tudo.

IN Alice Vieira - Vinte Cinco a Sete Vozes
1999

Colocado por Rogério Coelho

CANTINHO DOS MARAFADOS

O Azeiteiro e o Burro
Adaptado por Adolfo Coelho


Dois estudantes encontraram, numa estrada, um azeiteiro com um burro carregado de bilhas de azeite. Os estudantes estavam sem dinheiro; por isso, decidiram roubar o animal. Enquanto o pobre homem seguia o seu caminho, um deles tirou a *cabeçada do burro e colocou-a no pescoço. O outro estudante fugiu com o animal e a carga. De repente, o azeiteiro olhou para trás e viu um rapaz em vez do burro.
Nesse momento, o estudante exclamou: «Ah! senhor, quanto lhe agradeço ter-me dado uma pancada na cabeça! *Quebrou-me o encanto que durante tantos anos me fez ser burro!...» O azeiteiro tirou o chapéu e disse-lhe: «Afinal, o meu burro estava enfeitiçado! Perdi o meu *ganha-pão! Peço-lhe muitos perdões por tê-lo maltratado tanta vez - mas que quer? - o senhor era muito teimoso!»
- Está perdoado, bom homem! - disse o estudante. O que lhe peço é que me deixe em paz.
O pobre azeiteiro lamentou-se porque já não podia vender o azeite. Então, foi pedir dinheiro a um compadre para ir à feira comprar outro burro. Quando lá chegou, viu um estudante a vender o seu burro. O azeiteiro pensou que o rapaz se tinha transformado, outra vez, num animal! Aproximou-se do burro e gritou com toda a força: «Olhe, senhor burro, quem o não conhecer que o compre».

IN Conto Tradicional Português - recolhido por Adolfo Coelho
Glossário
*cabeçada do burro (pop.). Peça de couro que se coloca na cabeça deste animal para o obrigar a seguir em frente.
*Quebrou-me o encanto (pop.). Expressão que significa interromper um efeito mágico, um feitiço.
*ganha-pão (pop.). Meio de subsistir e de viver.

Colocado por Rogério Coelho

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Verme na cerveja!!!!



Um professor de química queria ensinar aos seus alunos do 2º Grau os males causados pelas bebidas alcoólicas e elaborou uma experiência que envolvia um copo com água, outro com cerveja e dois vermes.

- 'Agora alunos, atenção'! Observem os 'vermes', disse o professor, colocando um deles dentro da água.
A criatura nadou agilmente no copo, como se estivesse feliz brincando.

Depois, o mestre colocou o outro verme no segundo copo, contendo cerveja.

O bicho se contorceu todo, desesperadamente, como se estivesse louco para sair do líquido e depois afundou como uma pedra, absolutamente morto.

Satisfeito com os resultados, o professor perguntou aos alunos:

- 'E então, que lição podemos aprender desta experiência?' .

- Joãozinho levantou a mão, pedindo para falar, e sabiamente respondeu:

- 'Quem bebe cerveja... não tem vermes!'

Foi aplaudido de pé!!!
encontrado na net

Saudações Costeletas
António Encarnação

OUTROS AUTORES

NATAL CHINÊS

Maria Ondina Braga

A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa

A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.

Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.

Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.

Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreitavam, curiosas.

Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.

Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.

O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.

Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.

O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», bebia dois cálices.
Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha generosamente.

Quando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.

A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.

... E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.

Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta.

Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.

Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.

O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.

Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha?

Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.

Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria.

IN Maria Ondina Braga - A China Fica ao Lado,
1968
Notícias sobre o João B. de Sousa

Alberto Rocha, costeleta, desde sempre residente em Santa Catarina da Fonte de Bispo, é reconhecidamente um dos meus grandes amigos dos bancos de escola.
A distância geográfica jamais significou afrouxar da amizade. Ambos sabemos que cada um esteja aonde estiver, disponibiliza-se para o que o outro precisar.
Desta simbiose nasceu uma amizade e consideração para com outro costeleta - João Brito de Sousa -. e que o blogue proporcionou.
Culto, irreverente, humilde e sobretudo dedicado à causa costeleta e aos amigos da sua infância, o João tem passado por um período mais complicado da sua saúde.
Foi com enorme satisfação que o Alberto Rocha me comunicou telefonicamente, a alegria do João, quando no dia anterior lhe disse que tinha saído de casa sozinho para um passeio, e que isso significava uma melhoria significativa na sua saúde. Pensamos que esta notícia agradaria à nossa comunidade e por isso resolvemos escrever este pequeno texto.
Um abraço ao João Brito de Sousa

Alberto Rocha e Jorge Tavares


Frase com 2064 anos

Enviado por Mauricio Domingues

quarta-feira, 24 de novembro de 2010


SOPA DE PEDRA

Sopa de pedra ou sopa da pedra é uma sopa típica da culinária de Portugal, em particular da cidade de Almeirim, situada no coração da região do Ribatejo, considerada a "capital da sopa da pedra".
Ao contrário do que o nome indica, a sopa de pedra é uma sopa com muitos ingredientes, em que a “pedra” é apenas o “pretexto”.
 Aparentemente, esta designação encontra-se em muitas culturas ocidentais e tem como base uma lenda ou fábula:
Era uma vez um viajante que andava de país em país, de terra em terra. Um dia quando estava de passagem por uma pequena aldeia reparou que a sua comida tinha acabado, e já estava a ficar com muita fome.
Foi andando de um lado para o outro a pensar numa forma de arranjar comida. Tinha muita vergonha de ir pedir, mas parecia que daquela vez não tinha outra hipótese.
Enquanto ia andando deu um pontapé numa pequena pedra que estava no chão, era uma pedra muito lisa e bonita, foi então que teve uma ideia de conseguir almoçar sem sentir tanta vergonha.

Bateu à porta de uma casa, que parecia ser de um grande agricultor da região.
Quando o dono da casa abriu a porta o viajante disse-lhe:
– Bom dia senhor, eu sou viajante e trago comigo uma pedra mágica capaz de fazer a melhor sopa do mundo, quer provar?

Ao dizer isto retirou do bolso uma pedra muito lisa e redonda. Era parecida com outras que o agricultor conhecia, mas como gostava muito de sopa decidiu aceitar provar a tal melhor sopa do mundo.
O viajante entrou e pediu uma panela grande com água e um pouco de sal, colocaram a panela ao lume e a pedra lá dentro. Quando a água começou a ferver o viajante provou e disse:

– Está quase pronta, mas ficava ainda melhor se lhe pusermos umas batatas.
– Oh homem! Não seja por isso, eu sou um grande agricultor desta região, batatas é coisa que não me falta.
– Obrigado, assim a sopa vai ficar muito melhor.

Passado mais algum tempo voltou a provar.

– Está quase, mas ficava ainda melhor se lhe pusermos umas cenouras

O agricultor lá foi buscar as melhor cenouras que tinha em casa.
Após provar várias vezes o viajante foi pedindo outros vegetais, couve, cebola, feijão, entre outros. Quando a sopa já estava rica em vegetais, o viajante disse:

– Caro amigo, a sopa está a ficar uma delícia.

O agricultor mal podia esperar para provar a sopa, que é uma coisa que ele adora.
O viajante após provar mais uma vez pediu:

– Oh amigo esta sopa ficava ainda melhor se lhe pusermos um pouco de carne de porco, tem ai alguma coisa? Chouriço, por exemplo.
– Mau, mau, já lhe disse que sou agricultor, coisas dessas não faltam cá em casa.

Mais uma vez foram colocando algumas carnes na sopa.
Provou mais uma vez e disse com um grande sorriso:

– Está pronta!!!
– Já não era sem tempo, vamos lá provar essa sopa

O viajante serviu a sopa para os dois.
Depois de a provar, o agricultor exclamou:

– Tinha razão, é mesmo a melhor sopa que já comi até hoje, essa sua pedra é realmente mágica. Não me a quer vender?
– Não está à venda, é muito valiosa para mim, foi-me oferecida por um mago de um país distante.
– Muito bem, obrigado na mesma por me ter deixado provar esta sopa.
– Obrigado eu.

Despediram-se e o viajante continuou a sua viagem por outras terras, utilizou várias vezes a sua pedra mágica e assim conseguiu comer sem ter vergonha de pedir e foi desta forma que a receita da sopa de pedra foi passando de terra em terra e hoje ainda a podemos provar em vários locais, com diferentes receitas.

IN wikipédia
Alfredo Mingau
PERPLEXIDADE

Maria Judite de Carvalho

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente.
Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.» «Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração. «A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.

IN Maria Judite de Carvalho
2-10-81