segunda-feira, 29 de novembro de 2010

DOIS DEDOS DE PROSA
Por Norberto Cunha

APRESENTAÇÃO

Quando, ao folhear o seu jornal, os leitores deparam com o rosto e a prosa dum novo colaborador, por certo experimentam algo semelhante àquele misto de surpresa e expectativa que todos sentimos sempre que, em casa, recebemos uma visita inesperada. Em ambos os casos, a surpresa é tão-só a centelha do instante. Mas a expectativa do leitor é porta por ele entreaberta a uma nova convivência. E sendo a página escrita o espaço natural e imediato desse possível e específico “viver com”, compete àquele que a escreve transmutar em apetência, aprazimento e interesse, aquilo que, à partida, foi no outro que a lê, curiosidade espontânea e aposta cautelosa. É nesse sentido que hoje ensaio um primeiro passo, fazendo deste encontro inaugural o lugar e o momento para, antes de tudo, dizer algo sobre mim e ao que venho. Sou um farense “exilado” há quase cinquenta anos no concelho de Cascais, bancário aposentado, licenciado em Filosofia, que gosta de escrever e faz da escrita exercício vário, abrangente, onde a cidadania também cabe. Propus-me, e proponho-me, colaborar neste jornal com a intenção de partilhar ideias, opiniões, porventura um pouco do meu modesto saber, esperando dar assim um pequeno mas positivo contributo a uma publicação que a vários títulos o merece, inclusive por se tratar de um média que — a par com o seu desempenho de porta-voz do S.C.O. — pela sua história, prestígio e vitalidade, se vem afirmando como sólido baluarte da imprensa regional. Move-me também o intuito de restaurar, ainda que à distância, uma antiga relação de boa vizinhança, de reatar um contacto permanente com gentes de Olhão. Propósito feliz, desde logo premiado com um bom augúrio. Antes de me imaginar escrevendo estas linhas, já um primeiro e gratificante reencontro (por ora apenas verbal, mas reencontro) acontecia entre dois “velhos” conhecidos: o olhanense Mário Proença e eu. De novo lhe agradeço o pronto e afável acolhimento à minha pretensão. Quanto aos temas e ocorrências que terei por objecto, adianto que se inscrevem prioritariamente nos domínios da cultura (artes, ciências, história) e da vida social e política. A opção em cada momento obedecerá, na medida do possível, a um critério de oportunidade. Dito isto, deveria, talvez, ficar por aqui, atendendo a que, enquanto veículo duma apresentação, este texto já cumpriu o seu percurso. Porém, presumindo que ao vir a lume, ao interpelar os leitores, poderá ser recebido com a mesma atenção que dispensamos à visita inesperada, então não posso dar por findos, a visita e o texto, sem retribuir a amabilidade dos seus anfitriões. E faço-o deixando-lhes uma pequena e simbólica prenda, na forma de um apontamento sobre a Ria Formosa. Refere-se a um local determinado, mas poderia ter por referente qualquer outro, de quantos, idênticos, dela são parte:

Preia-Mar no Ancão

O pino da tarde é o momento.
Lânguida, verde e transparente
a toalha oceânica
renova a posse inteira, soberana
e amante sobre a Ria.

Com ternura,
deita-se já nas ilhotas rasas
do sapal
e carícias imprime
no cálido lençol dos louros areais

Misturam-se odores.
Terra de sal irrigada
eflúvios de cardo e trovisco
limos e murraça
tojos, pinho.
Erótico perfume.

É agora.
Cessou o trotar de caranguejos
o compasso da babugem
a tensão nas amarras
e a deriva dos barcos
o voo das aves
o percutir de insectos
o rumor da brisa.

No deslumbre
do olhar aprisionado
repousada e soberba
a líquida e límpida planura•
aí está, enfim•
em toda a extensão•
da sua fecundidade
em toda a grandeza
da sua imponente quietude.
Agora tudo é uno, inteiro
completo
perfeito.

Em êxtase•
rendido ao pleno da maré
detém-se o universo.
Só o sentir se move•
e a memória guarda.
Não são mais•
que saudade antecipada
ocaso deste instante mágico
e único sempre.

Obviamente,
nunca o cronista bíblico
se aventurou por esta estreita
remota e ignota faixa do paraíso.
Mas sem ela, sem estes aromas
esta luz, esta paisagem•
este momento sublime•
Éden algum alcançará a completude

IN Norberto Cunha - Jornal "o Olhanense"
2010

Colocado por Rogério Coelho

2 comentários:

Anónimo disse...

SUBLIME.

Assim é mesmo.
Esse instante mágico, que sentido, Só o poeta o sabe reproduzir
na sua essência.
e cada vez que relê
se emociona e sente,
como o estivesse a viver pela primeira vez.

Só a Palavra.
Nem a fotografia,
nem tão pouco os sons, ou a cumplicidade do silêncio ausente, me fazem reviver os momentos inesquecíveis .

J.Elias Moreno

Anónimo disse...

Obrigado Norberto.
Ria....o cenário, o imaginário e a realidade de amores falhados...
Mas nem todos!
Se a saudade matasse!
Abraço

DCS