terça-feira, 23 de novembro de 2010

O REMEXIDO, RETIRADO DE
 a Brasileira de Prazins



PERSEGUINDO OS AFEIÇOADOS
 À REVOLUÇÃO DO PORTO



Em 1836 apareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, em São Bartolomeu de Messines. Os dois ex-sargentos alvoroçaramse com a notícia e resolveram apresentar-se ao formidável candilho. Veríssimo pediu à tia uma quantia mais avultada para pagar as últimas despesas do sacerdócio. A velha mandou-lhe o preço de uma vinha vendida e a sua bênção. Os aventureiros partiram para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de capitães. Veríssimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu heróico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia Águeda, e lhe dissesse que ele não podia largar a espada vencida enquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general Sousa Reis estava destinado a repor o Sr. D. Miguel I no trono, ou ser o último a morrer em sua defesa; que ele e um seu amigo e camarada tinham saído de Braga juramentados a morder o pó onde caísse o seu general. Que eram já comandantes de companhias, e tinham duas carreiras abertas -- uma que levava à glória, outra à sepultura -- que também era uma glória morrer pela pátria.



José Joaquim, o Remexido, era um bem figurado homem de trinta e oito anos. Nascera em Estômbar, estudara para clérigo no seminário de Faro, e distinguira-se em perspicácia e subtileza na percepção das teologias. O amor inutilizou-lhe o talento aplicado a um pacífico e humaníssimo destino. Viu uma esbelta moça de São Bartolomeu de Messines quando aí foi pregar um sermão, sendo minorista. As serenas visões do levita deslumbrou-lhas a formosa algarvia. Não hesitou entre o amor da humanidade e o culto egoísta da família. Casou, e de homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas searas, e redobrou de esforços à proporção que os filhos lhe multiplicavam o amor e os cuidados.



Insensivelmente compenetrou-se da paixão política. Nesta província, onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o domínio francês, a liberdade proclamada em 1820 abriu um abismo entre duas facções que por espaço de dezoito anos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más ideias, e manifestou-se em 1823 um ardente sectário das más, perseguindo os afeiçoados à revolução do Porto. Em 1826 emigrou para Espanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do rei absoluto. Daí em diante, receoso das retaliações, não teve mais uma hora de remansoso contentamento nem abriu mão da espada tão afoita quanto cruel.



Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionária às praias da Lagoa, em 24 de Junho de 1833, Sousa Reis com alguns cúmplices foragiu-se nos recôncavos do Penedo Grande, cujas veredas montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flor dos anos, inculpados idas paixões de seu pai, fiados na generosidade dos vencedores e na própria inocência. A vingança fez represálias na família do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa, depois do roubo e do incêndio da sua casa de Messines. O leão, como se ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna, precipitou-se dos penhascais à frente da sua alcateia, e atacou Estômbar com irresistível ímpeto. Estava ai a sua família sob a pressão das baionetas que a vigiavam como armadilha à queda do guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir à fúria de pai. Ele atirava-se às descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os inimigos que o viram nesse dia conservaram longo tempo a lembrança da sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem gentilíssimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve e estendeu até às fronteiras do Alentejo os seus domínios. Moveram-se contra ele muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da guarda nacional. Ele tinha adoecido de fadigas incomportáveis, e descansava com algumas centenas de homens num desfiladeiro da serra, chamado a Portela da Corte das Velhas. Ai o atacou uma coluna de caçadores 5. O Remexido, afinal, faltou-lhe a coragem de se fazer matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as baionetas. Deu-se à prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em Faro.

O regimento em que eram capitães o Veríssimo e o Nunes dispersou, e eles, claro é, fugiram à maneira dos muito discretos e bravos generais de que rezam os fastos militares



O pré dos guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatela ridícula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas algibeiras. É o que foi, e a história não pode dizer outra coisa. Queria talvez o major de Vila Verde, o denunciante de Braga, que eles andassem à carta das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os quatro vinténs diários e o vintém do munício!

Veríssimo foi para Alvações e Nunes para São Gens.



O Norberto morreu por esse tempo de uma congestão cerebral; alguém diz que o esganaram na cama dois malhados de Lobrigos contra os quais ele tinha jurado em 28. D. Águeda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava empenhada; foi à praça; sobejaram uns novecentos mil-réis e a casa com as armas, pagas as dívidas. O Nunes dizia-lhe da Póvoa que andava por lá miserável, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem tinha que vestir. O Veríssimo chamou-o para Alvações com generosidade. Vestiu-o, e dava-lhe meios para ele poder estudar em Vila Real, com advogados miguelistas, que o estimavam muito.



A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do Sr. D. Miguel das iluminações, que se parecia muito com o sobrinho.

No Inverno de 1840, D. Águeda morreu de uma indigestão de castanhas, complicada com enterite crónica e saudades da realeza. Deixou ao sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do Sr. D. Miguel às freiras de Santa Clara de Vila Real e mais dez moedas de ouro com a condição de lhe acenderem quatro velas de cera no dia dos anos de Sua Majestade.



Veríssimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo capitão Veríssimo. Deitou cavalo e mochila; jogou rijo dois anos na Feira de Santo António, em Vila Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já solicitava causas na Póvoa, repartia com ele dos seus proventos muito escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacável, e as partes fugiam dele.



O Veríssimo saiu de Alvações, onde não possuía palmo de terra; e, como tinha boa forma de letra, ofereceu-se para amanuense a um tabelião de Alijó. Ganhava três tostões por dia e jantar. Como era boa figura, a mulher do tabelião, uma trigueira de má casta, entrou a compará-lo com o marido, que tinha os dentes muito lurados e os olhos tortos. Mas o tabelião viu as coisas pelo direito, e pôs o amanuense na rua, e a mulher em lençóis de vinho, dizia-se. Veríssimo conhecia o capitão-mor de Murça, o Campos, uni hebreu realista, muito abastado. Ofereceu-se-me para escudeiro e foi aceite com bom ordenado. O capitão-mor era viúvo; mas tinha uma governanta fresca, de uma fome de pecado irritada pela indiferença judaica do amo em matéria de religião. O Veríssimo tinha a fatalidade femeeira do seu Sósia, do Sr. D. Miguel. O capitão-mor, com o seu fino olho de raça, lobrigou as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e impô-lo. Voltou ao Douro, e procurou o amparo de um realista poderoso, o António de Melo, de Gouvinhas, o pai do Sr. Lopo Vaz, um grande ministro liberal cheio de embriões de coisas, O fidalgo de Gouvinhas nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorizava pouco; o fidalgo admitia-o às suas palestras íntimas de política; mas um sobrinho do Melo, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o Malagueta, ganhou-lhe ódio, por ciúmes de uma tecedeira chibante, uma raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libânia de Covas. Travaram-se de razões. O Malagueta correu sobre ele com um punhal. Veríssimo acobardou-se na sua posição dependente e despediu-se.



A Libânia tinha cordões e umas moedas ganhas com o pudor diluído no suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João Camelo abriu uma escola de primeiras letras em Miragaia. Ao cabo do primeiro mês, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado, não podia com aquela bestialidade da instrução primária. A Libânia queixou-se um dia de dor de dentes. Foi uma inspiração. O Veríssimo resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, à Rua de Santo António, um bom homem. Andava neste tirocínio, quando encontrou no Tívoli, defronte da Biblioteca, o Nunes. A Libânia gostava muito de resvalar pela montanha russa, dava umas risadas argentinas, batia as palmas e queria montar os cavalos de pau que giravam no jogo da argolinha.



Quando se encontraram, o Torcato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha morrido, deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dois filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brasil, trabalhar em mangas de camisa, se fosse necessário. O Veríssimo respondeu-lhe que o único favor que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe as suas misérias mais íntimas; que aquela boa rapariga tinha gasto com ele quinze moedas e vendera o seu ouro; mas, tão generosa, tão honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava resolvido a ir estabelecer-se corno dentista na província, logo que pudesse comprar o estojo, que custava 12$000 réis, e não os tinha.



-- Se os não tens -- disse o Torcato -- minha mulher tem um cordão que pesa três moedas; para mim não lho pedia; mas para ti vou buscá-lo amanhã. -- E acrescentou, de excelente humor: -- Deus permita que na terra onde te estabeleceres sejam tantas as dores de dentes que não tenhas mãos nem queixos a medir.



Saíram alegres do Tívoli. Sentiam-se bem aquelas duas organizações esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam deveras, dois náufragos a quererem chegar um ao outro a mesma tábua de salvação. É nestes esgotos sociais que ainda, uma vez por outra, se encontram Pílades e Orestes.



O Veríssimo morava atrás da Sé, na Rua da Lada, uma casa de um andar, muito empenada, com o peitoril de ferro de uma única janela desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra corno a boca de um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cozida com cebolas, sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da companhia de tostão à Rua Chã, e enfiou no braço uma rosca de Valongo, que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões de ouro, que frigia peixe à porta e dava arrotos.



Cearam numa estúrdia de rapazes, como em Braga, nove anos antes, na tasca do Catrâmbias, na Rua do Alcaide. A Libânia de Covas muito larachenta -- que levasse o Diabo paixões, e mais quem com elas medrava; que, em se acabando o dinheiro, faziase cruzes na boca; mas que deixar o seu Veríssimo, não o deixava nem à quinta facada.



-- Nós devíamos ir todos para o Brasil -- lembrou o Torcato, que tinha meditado num recolhimento extraordinário.

-- E chelpa? -- perguntou a Libânia.

-- Se tu quiseres, Veríssimo, dentro de um mês temos um conto de réis.

-- Boa!... --disse o outro.--Bem se vê que as duas garrafas deram o que podiam dar -- uma fantasia de um conto de réis. Por dois tostões é barato.

-- Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não estou bêbedo, palavra de honra!



Libânia pôs a face entre ais mãos e os cotovelos na toalha suja de vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do Nunes. O Veríssimo atirou com as pernas para cima da banca, acendeu um charuto de dez-réis e disse que falasse à vontade.

-- Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?

-- Começas bem. Temos asneira.

-- Mau! Não me fales à mão.

-- Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça aclamar rei, e, para evitar efusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria II os meus direitos à coroa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.

-- Adeus minha vida! -- retrucou o Nunes impaciente. -- Amanhã conversaremos.

-- Deixa falar o homem! -- interveio a Libânia. -- Ora diga lá, é sê Nunes.



O Torcato expôs a sua teoria do conto de réis, desfez atritos, removeu dificuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto Minho, os dois. Libânia iria para Ramalde trabalhar nos teares da Grainha, que lhe dava comida, cama e doze vinténs por dia. Venderiam a um adeleiro da Rua Chã os trastes para o Veríssimo se enroupar de pano piloto, quinzena e calças com alguma decência, roupa branca, reforma das botas cambadas, chapéu de feltro e um paletó de agasalho.



Na quinta -feira gorda, a Libânia, com exemplar coragem, foi para Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendê-las ao Douro, tinha visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no Porto:



-- Olhe, moça, quando quiser ganhar a vida honradamente, lá estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençóis lavados na cama.

O Nunes e o Veríssimo foram juntos até perto de Braga. Aí, o de Calvos seguiu para casa, e o outro no sábado gordo partiu para a Póvoa de Lanhoso.



Retirado da obra de CAMILO CASTELO BRANCO, a Brasileira de Prazins,.por

João Brito Sousa

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