sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O VELHO E A GAIVOTA (fim)



Por João Brito Sousa


E foi-se embora.

Depois da saída do velho eu e o Dr. Guedes ficámos a conversar no jardim, sentados num banco, que entretanto ficava vago. Tentamos conhecer-nos melhor um ao outro, falando de tudo e sem rodeios o que foi óptimo. O Guedes falou de casos que se passaram na repartição, coisas complicadas e difíceis de resolver, daquelas situações que tornam a humanidade infeliz. Foi nesta altura que o Guedes perguntou: - o velho será feliz?

- Eu acho que a questão do velho não será de felicidade ou infelicidade, o problema é mais de falta de coerência, ele falhou em qualquer aspecto da sua conduta pessoal, deverá ser uma questão com uma certa força que o afectou sobremaneira. O velho é rijo e forte, não se deixa abater assim à primeira, é mais uma questão em que ele se sente culpado, eu estou a ver a coisa mas talvez não a saiba explicar, é uma questão de honra que está em jogo o que gera no velho um pouco de angústia, porque se trata, penso eu, de uma situação quase irreparável.

- Mas ó Ismael, você está a ver longe. O que é que o leva a dizer tal, perguntou o Dr. Guedes.

- Nada de especial, é uma certa forma de ver, de excluir hipóteses sem hipóteses, veja bem, se houvesse ainda a possibilidade de o hipotético problema se resolver seria resolvido e pronto. Mas a mim parece-me uma coisa fora de tempo e fora das possibilidades de solução imediata. Portanto o meu raciocínio vai cair dentro do campo do impossível, por exemplo uma grande ofensa que se fez a alguém que entretanto morreu é uma coisa que não se pode recuperar e causa-nos problemas de consciência. É uma coisa assim, disse eu.

-Ah, sim, entendo, disse o Guedes.

- È claro que isto é uma espécie de um passatempo, nada mais do que isso, disse eu. Mas amanhã, saberemos, disse eu.

- Talvez disse o Guedes.

E despedimo-nos com um até amanhã aqui, às 16 horas.

- Está bem, disse eu.

- Ok, disse o Guedes

Não pensei mais no assunto até à hora do almoço do dia seguinte, sábado, portanto. A vida sem grandes confusões vive-se melhor e tinha chegado à conclusão que não teria uma resposta para o problema do velho. Mas à hora do almoço desse sábado algo dentro de mim me alertou para qualquer coisa.

Às dezasseis horas lá estávamos todos no jardim; eu, o Guedes, o velho e a gaivota. O velho ao ver-nos, veio em nossa direcção e entregou-nos um envelope que estava aberto com um documento lá dentro e disse-nos para o lermos.

E dizia, meu General, já recebi a tua prenda de anos, mas, como em todos os anos, não foi a que eu desejava. Se me tivesses perguntado, ter-te-ia dito: BRINCA COMIGO AVÔ.

O velho voltou até nós, depois de se aperceber que tínhamos lido o documento que estava dentro do envelope e disse.

- Foi o que eu nunca fiz e é esse o meu grande problema. Perceberam?

E nós não respondemos.

 
jbritosousa@sapo.pt

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro João:
Estás a morar,suponho eu,muito próximo ou pelo menos na mesma cidade, de um homem que fala da vida e da morte , sem preconceitos nem angústias, como ninguém. É um idoso que se recusa a ser velho; o Professor Daniel Serrão.Lembrei-me dele pela tensão não libertada, existente na consciência (ou inconsciente-não sei explicar isso)do teu Velho.O Prof.Daniel Serrão contou na TV a forma como lavou de toda a imundicie preconceituosa, a sua mente em relação à preparação da sua viagem para a outra margem.
O Actor e Encenador António Feio, recentemente falecido vítima de doença prolongada, usou o tempo do prolongamento de vida, que a morte lhe concedeu, para escrever um livro, fazer as pazes com o mundo, agradecer a quem devia e ainda deixar um conselho aos que por cá forem ficando:NÃO DEIXEM NADA POR DIZER /NÃO DEIXEM NADA POR FAZER.
O teu trabalho impressionou-me.
E trouxe-me à cabeça, estes dois casos recentes, que são os testemunhos de um Idoso que se recusa a ser Velho e de um Jovem que não chegou a ser Idoso, quanto mais Velho, perante a Libertação da consciência, na hora da partida para a outra margem.
Saramago era mais descontraído: Hoje está-se...Amanhã não se está.
Abraço.
J.Elias Moreno

Anónimo disse...

MEU CARO ELIAS

Viva.

Excelente comentário. Abrangente e caloroso.Que fala e enaltece pessoas. As pessoas são a melhor coisa do mundo.

Como tu e a tua neta Susana. Ela é que disse: BRINCA COMIGO AVÔ. e eu pintei aquele velho que não tem nada a ver contigo, ou talvez tenha, mas tu perguntaste, o que é que gostarias que o avô te oferecesse ?

O meu velho nunca perguntava nada, aí tens, dizia. Mas não era isso que a neta queria.

Só mais tarde é que o velho se lembrou que havia outras ofertas para além da oferta.

Como a ternura, o carinho, o amor, um simples sorriso... gestos que tornam a vida linda.

Parece-me a mim que é isto.

Ab.
JBS