quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

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Nas asas da paixão

Norberto Cunha

"Veja lá ... roubaram os passarinhos do senhor Rodrigues ... "
A notícia correu célere pela aldeia, causando surpresa e indignação.
Familiares, amigos, vizinhos, todos se sentiram roubados e durante dias o sucedido permaneceu assunto de conversa, como se tivesse a dimensão de acontecimento público importante. Daqueles que cativam lugar em qualquer memória. Mas nem outra coisa seria de esperar.
Costumes, sentimentos e afectos moldados pelo viver campesino ainda ali permaneciam vivos, apesar de a implantação da indústria vir esbatendo os mais visíveis traços da ruralidade. E para encanto dos mais pequenos e consolo dos mais idosos, era na quintinha do Sr. Rodrigues que podiam ver-se; ou mesmo tocar-se, patos, pombos, gansos, coelhos, ovelhas, cabras, cágados, até rãs e um multicolor conjunto de pássaros exóticos e nativos. E era destes - a seguir às crianças, a sua maior paixão - que o proprietário mais se orgulhava. Papagaios, araras, colibris, pintassilgos; canários, rouxinóis e muitas outras aves cuja espécie só ele sabia identificar, pululavam em gaiolas móveis e fixas, individuais ou colectivas, enchendo a garagem, anichando-se sob a varanda ou noutros recantos abrigados da intempérie e da insolação.
Algumas das aves até tinham nome. E a par das suas necessidades específicas, a individualidade de quase todas era bem conhecida do Sr. Rodrigues que, gracejando, asseverava haver uma ou outra com tendências e preferências próprias de humanos, embora só uma velha arara parecesse justificar a asserção. Quem dela se aproximava logo era interpelado com a entaramelada saudação de "Á-pu!; Á-pu!; Á-pu!" No entanto, nem a alegada preferência do psitacídeo espelhava a do seu dono, nem, ao invés, constituía motivo de constrangimento para ele. As questões e eventos da política sempre os via à luz dum tolerante e bem-humorado distanciamento, atitude que reforçava a afeição com que o distinguiam vizinhos e conhecidos.
Não fora assim e logo alguém teria atribuído o roubo dos pássaros a uma torpe retaliação de cariz partidário. Mas na pacífica aldeia onde não se perdera ainda o hábito imemorial de só à noite fechar a porta de casa, quem se atreveria a preservá-lo? Ou a responder: "Ora, aqui em Ventais nunca acontece nada", a quem advertisse para o perigo? Quem poderia não se sentir inseguro, traído e revoltado se, de um dia para o outro, aquele fervilhar de passarada que a todos quase pertencia, se sumiu, emudeceu?
Para surpresa de muitos, apesar de tão doída perda foi o Sr. Rodrigues quem menos se alarmou e emotivamente reagiu. Quem sabe, alimentava a secreta esperança de que o ladrão se arrependeria e mais cedo ou mais -tarde, à socapa, lhe restituiria as suas estimadas aves.
A verdade é que, mais pesaroso que indignado, sempre que o inquiriam se limitava a relatar como se apercebera do roubo: Um silêncio sinistro, um vazio opressivo assaltara-o a meio da noite, despertando-o. Preocupado, desceu ao piso térreo e ainda mal abria a porta da entrada já se dava conta do sucedido - as gaiolas abrigadas sob a varanda tinham-se esfumado. Receando o pior, rodeou a habitação e por toda a parte a tragédia repetia-se, inclusive na garagem. Aí apenas restava a velha arara que o larápio, talvez no receio de vir a ser descoberto, não se atreveu a levar.
"Vá atrás do ladrão, queixe-se à guarda" - sugeriam-lhe. "Com certeza é pessoa que conhece bem os cantos à casa".
Outros, mais cépticos, minimizavam a importância do caso e tentavam conformá-lo, ficando-se por um: "Lá terá de arranjar novos passarinhos".
Sem dúvida, o lesado poderia, se quisesse, repor de um momento para o outro o seu aviário. O dispêndio, para alguns proibitivo, não lhe beliscaria os haveres. Contudo, a sua paixão, e paixão retribuída, era por aqueles "passarinhos" que, premiando uma longa convivência, dir-se-ia que o conheciam tão bem quanto ele os conhecia. Ainda assim, ao que pareceu, algum tempo depois o Sr. Rodrigues conformou-se com a perda. Era a tristeza que se dissimulava no coração e, aí recolhida, só de onde em onde e por um momento fugaz lhe fluía no olhar.
§
Estiolaram os fios d'água no remanso. dos ribeiros, recolheram-se os ventos e as festas de Agosto, regressam as crianças à alegre expectativa das primeiras aulas e toda a aldeia terá esquecido já o pequeno drama do furto das aves. Mas, inesperadamente, o Sr. Rodrigues volta a ser alvo de todas as atenções. Desta vez, porém, a notícia arrasta-se pesada e lenta, tolhida por um véu de compaixão, pudor e estranheza.
"O senhor Rodrigues está doente, muito doente", comenta-se em tom grave de respeito e receio evitando a referência ao mal que o aflige. "Coitado, logo tinha de acontecer-lhe uma coisa dessas. É tão boa pessoa". Era mesmo. Nos tempos em que a posse de automóvel sugeria riqueza, havia sido o pronto-socorro da vizinhança e desde sempre a ele meio mundo recorria se precisava de uma ferramenta agrícola ou outra, um cabo eléctrico, um andaime ... O senhor Rodrigues tinha tudo e nunca se fazia rogado.
Agora, sepultada a esperança de reaver o objecto maior do seu orgulho e afeição, perdida a saúde e ameaçada a vida, que mudava nele? Nada, na sua generosa disponibilidade, pouco, quase nada, no trato com toda a gente, mesmo com quem mais de perto convivia. Mas no seu íntimo fustigava-o a dor dum irremediável e definitivo desapossamento, como se de tudo o que possuía nada lhe restasse já. Só o carinho acrescido de familiares e amigos a mitigava. E de novo ninguém lhe escutava o menor lamento, lhe via gesto ou expressão a denotar a tristeza que transparecia tão-só num sentimento de saudade, sempre a invadi-lo a propósito das mais pequenas coisas. Por vezes, escapava-lhe numa silenciosa e tímida lágrima, na presença de quem o visitava pela tardinha, quando se sentava agasalhado, frente à janela, seguindo o sol na sua diária despedida.
Também a velha arara passou a fazer-lhe companhia todos os dias, durante algumas horas. Deixara de palrar por esta altura, mas a sua presença era para o doente um precioso sinal da permanência do mundo de afectos, num mundo a esbater-se inexoravelmente, a abandoná-lo um pouco à passagem de cada dia, cada hora, cada momento.
Breve foi esse tempo. Cada vez mais débil, o Sr. Rodrigues deixou de levantar-se e já só ajudado se movia no leito. E os contornos coisas próximos, domésticas e familiares, confundiam-se-lhe a amálgama de imprecisas cores e volumes, envoltas numa luminosidade variável e indecisa; imersas na quase imperceptível transição do dia à noite e da noite ao dia, marcada por último apenas pela alternância do silêncio com o sussurro de vozes, única e derradeira baliza e medida do escoar do tempo.
Foi então, sem que mais alguém de tal se apercebesse, que na brumosa espessura do silêncio de súbito surgiu uma límpida manhã.
E a memória dos sentidos dormente e dispersa, aflorou ávida e nítida nesse inesperado alvorecer em que, numa festiva e suave alegria, todos os passarinhos do Sr. Rodrigues irromperam pelo seu quarto.
Com ternura, os viu adejar primeiro em seu redor, para descerem depois sobre o seu leito, ou com delicadeza lhe pousarem nos ombros e nos braços, cantando e batendo asas. E sorriu.
E sorrindo, tranquilo, sentiu-se por eles transportado e logo transmutado em pássaro ágil, leve e livre, voando alegre, sereno e sem destino, na claridade dum espaço imenso e luminoso, dum azul sempre azul, um infinito azul.

IN Norberto Cunha – O Triangulo de Dezembro e outras ficções
2007
Colocado por Rogério Coelho (Com autorização do autor)



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