segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

UMA ESCOLHA DIFÍCIL!...

O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia "facilitado", isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes.
Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em que Janeiro?, e de que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.
Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar o cheque a ser recebido no mês que vem ("Falta só uma semana, Seu Apolinário").
Além dessas delícias raras, Seu Apolinário faculta ao cliente dar palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, as lulinhas fritas, o robalo de primeira, a batata doce frita feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-gostoso.
Uma noite dessas, o movimento era pequeno. Seu Apolinário veio sentar-se ao lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também.
O garçom estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Apolinário, calado, olhava para a lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:
- Que tal um fígado acebolado?
- Acabou, madame - atalhou o garçom
.- Deixe ver... Bife de atum de cebolada, está bem?
- Não, não tenho vontade disso - e Seu Apolinário sacudiu a cabeça.
- Bem, estou vendo aqui uns choquinhos com tinta, com arroz de coentro...
- Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi umas papas de milho (xarém) com conquilhas, uma delícia e há dois dias que me servem feijão ao almoço - ponderou.
A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:
- Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há. Um bacalhau à qualquer coisa? Pois Seu Apolinário (refletiu ela) como bom português, e como todo lusíada que se preza, há de achar que todo o bacalhau é bom prato.
Da cozinha veio a informação:
- Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?
- É, pode ser isso - concordou Seu Apolinário, sem entusiasmo.
Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo a Gomes de Sá. A freguesa olhou o prato invejando-o, e, para estimular o apetite de Seu Apolinário:
- Está uma beleza!
- Não acho muito não - retorquiu, inapetente.
O prato foi servido, o azeite adicionado, e Seu Apolinário “garfou” o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.
Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:
- Como é, está bom?
Com um risinho meio de banda, fez a crítica:
- Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer:
- Está mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!
A cliente se lembrou, com saudade, daquele maravilhoso Gomes de Sá que se come no Retiro dos Amigos no Rio Sêco. E foi detalhando:- Lá é que se prepara um apetitoso, sabe? Muito tomate, pimentão, azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo...
Seu Apolinário emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando desta vez em sorriso aberto:
- Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas britadas, daquelas... Um santo, santíssimo prato! Mas, encarando o concreto:
- Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!
- Espera aí, Seu Apolinário, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar. Não tinha, infelizmente.

Um arranjo do “idiota” do Montinho


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