sábado, 5 de fevereiro de 2011

O “CAMIÃO GIGANTE”

 Por Norberto Cunha

Seria difícil inventar alcunha que melhor exprimisse a impressão induzida pelo aspecto físico da visada, uma idosa professora dos finais da década de cinquenta. Invulgarmente alta para a idade e para o tempo, volumosa de formas, pesada e desajeitada no andar, a sua figura surpreendia à primeira vista e logo na retina se gravava. Nunca vim a saber o nome dela nem que disciplina leccionava e só uma vez me foi dado observá-la. Mas ainda estou a vê-la.
Encontrava-me certa tarde no átrio da escola quando, irrompendo do grupinho postado no cimo dos degraus a espreitar a rua, dois colegas que eu não conhecia deram uma brusca meia volta e, acotovelando quem os estorvava, dirigiram-se apressados para a portada de acesso ao interior. Sem perceber o que sucedia, vi-os abrir as portas de par em par, segurarem-nas e perfilarem-se junto delas quais aperaltados e conspícuos mordomos. Surpreendido e expectante, não tardei a ser tomado de espanto perante a vénia exagerada que se seguiu: um lento, cerimonioso rodar e estender de braços apontando o corredor, no preciso momento em que a idosa senhora ali chegava. Jamais tinha assistido a uma tão ostensiva e desinibida ridicularização de um docente, estatuto que presumi ser o dela. Mas logo o meu anterior estado de espírito se avivou ao perceber que de quantos presenciaram a burlesca encenação, apenas eu a estranhara e se surpreendera. E não resisti a inquirir quem era a professora e o que levava os folgazões a tanto atrevimento e alguns dos demais a tão divertida cumplicidade. “Eh pá…, não sabes quem é a gaja? — É o Camião Gigante, pá.”, respondeu-me de pronto um dos autores da brincadeira, como se a alcunha me dissesse tudo. Achei-lhe graça, mas nem assim a minha expressão de estranheza se alterou e ele apressou-se a adiantar “ É uma chata, pá… Nunca falta nem chega atrasada! Até é boa a explicar a matéria, mas não bate a bola muito bem …”. Inesperada, surpreendente e duvidosa justificação. Por tão pouco, ou mais que fosse e que eu soubesse, publicamente professor algum tinha sido posto a ridículo e com tal aparato. Insisti, e, em pulgas por meter a sua colherada, o parceiro do meu interlocutor antecipou-se-lhe acrescentando que “aquela maluca” castigava os alunos com testes e mais testes, alguns parcial ou totalmente repetidos e cuja correcção nunca era feita. Era óbvio pois, que quanto a estes, se tratava dum pretexto para desviar de si as atenções, mantendo a turma ocupada. Porém, nem sequer fingia vigiar o comportamento de um e outro como se tais testes fossem a valer. Ao invés, e sem o mínimo disfarce, aproveitava esses “tempos livres” para resolver problemas de palavras cruzadas ou tricotar de peças de vestuário. A minha incredulidade suscitava outras perguntas, mas o primeiro dos brincalhões já retomava a iniciativa: “Então e aquela grande barraca que ela deu com as meias?”, lembrou, logo corroborado pelo segundo: “É verdade, pá! A gaja, assim que acabou de distribuir o ponto pôs um alguidarzinho com água em cima da secretária, descalçou as meias de vidro e esteve todo o tempo de volta delas a ensaboar, esfregar, enxaguar, sem se ralar com a malta”. Adivinha-se que, com a repetição de tais procedimentos, os despeitados alunos acabassem por perder a compostura. De facto, conforme aqueles dois me asseguraram, a dada altura já um ou outro se comportava de maneira menos correcta, mas dissimulada. Mas depois do falso teste “das meias” o protesto tomou a forma duma acção colectiva e concertada que aliava indisciplina e diversão. Fosse qual fosse o “afazer” com que a professora se entretinha e sempre que ela não pudesse descortinar os atiradores, logo voavam pela sala as bolas de papel amachucado com que a bombardeavam. Umas acertavam-lhe. Outras não. No entanto, para maior desconsolo dos improvisados artilheiros, era como se nenhuma a alvejasse. Tão empenhada se mostrava naqueles passatempos, até parecia nem se aperceber do bombardeio que volta e meia a flagelava. Ou, penso eu agora, tal o grau de perda de amor-próprio a que chegou, anos e anos a aturar gerações de catraios ou de imberbes adolescentes.

4 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro amigo Norberto Cunha
Mais uma bela prosa de recordações daquele tempo.
Rogério Coelho

Anónimo disse...

A professora em causa era conhecida por D. Fernanda, professora de desenho. Era minha professora no Ciclo Preparatório. Recordo o episódio das meias. Depois de lavar e espremer, foi pendura-las na janela para secarem, janela que dava para a alameda. E para que não voassem colocava em cima das meias o apagador do quadro. Acontece que uma das meias voou e a professora toda irritada foi à janela olhar. Várias alunas ofereceram-se para ir procurar a meia, motivo para darem um passeio à alameda e descontraírem-se da presença da D. Fernanda. Claro que a meia não foi encontrada, por ter caído em cima dos arbustos ou em cima das árvores o que se tornava difícil detectar. No final da aula a D. Fernanda teve que sair da sala apenas com uma das meias de vidro calçadas.
Dos muitos episódios recordo-me aquele em que a D. Fernanda foi à carteira da Otília Amaro e agarrou num tubo de guache. A Otilia gritou que o guache era seu e agarrou o tubo que a professora segurava. E cada uma puxou para o seu lado. Com a força que a Otilia fez espremeu o tubo e a tinta injectou para as mãos da professora e para o chão. Calcule-se a D. Fernanda irritada e escandalizada a olhar para as mãos pintadas de guache…foi uma gargalhada geral.

Isabel Coelho

Anónimo disse...

A D. Fernanda também foi minha professora de desenho no Ciclo Preparatório, no início da década de 1950. Uma das manias dela era mandar uma aluna comprar fruta, para se fazer desenho à vista, e antes de terminar-mos o t

rabalho já ela tinha comido toda a fruta.

António Palmeiro disse...

Olá!
A colega Isabel já colocou no devido lugar, como era efectivamente a D. Fernanda, que também foi minha professora de desenho no 2º ano do Ciclo.
Só pretendia acrescentar pequenos pormenores, a Senhora era de Loulé e entre a miudagem corria o boato de que ela teria vendido o esqueleto ao Liceu.
Nunca observei nada que me levasse a pensar que seria uma pessoa demasiado exigente com testes, ou que exercesse represálias pelas constantes brincadeiras da rapaziada.
Em minha opinião profissionalemnte era competente, mas havia ali um "pino" que não batia bem.
Um abraço a todos
Palmeiro