segunda-feira, 14 de março de 2011

CRÓNICA DA LOUCURA

O melhor da terapia é ficar observando os meus amigos loucos.
Existem dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do louco, o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim, somente um louco pode
dispor-se a ouvir a loucura de seis ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos.
Se não era louco ficou.
Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto, acabei diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas. Confesso, como louco confesso, que estou adorando estar louco semanal.
O melhor da terapia é chegar antes alguns minutos e ficar observando os meu colegas loucos na sala de espera.
Onde faço a minha terapia é uma casa grande com oito loucos analistas, portanto a sala de espera tem sempre três ou quatro, ansiosos, pensando na loucura que vão dizer dali a pouco.
Ninguém olha para ninguém. O silêncio é uma loucura e eu, como escritor, adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou palmeirenses. Acho que todo o escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo.
A sala de espera de um “consultório médico” como diz a atendente absolutamente normal (só uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como ela) é um prato cheio para um louco escritor como eu. Senão vejamos:
Na última quarta-feira, estávamos:
- Eu
- Um criolinho muito bem vestido.
- Um senhor de uns cinquenta anos
- Uma velha gorda
Comecei, é claro, a imaginar qual seria o problema de cada um deles. Não foi difícil, porque eu partia do princípio que todos eram loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e ensimesmados.
O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o nosso, deve ter contribuído muito para levá-lo até aquela poltrona de vime. Deve gostar de uma branca e os pais dela não aprovam ou conseguiu entrar como sócio do “Harmonia do Samba”, notei que os ténis estavam um pouco velhos. Problema de ascensão social, com certeza. O olhar dele era triste, cansado.
Comecei a ficar com pena dele. Depois notei que ele trazia uma mala, podia ser o corpo da namorada esquartejada lá dentro. Talvez apenas a cabeça. Devia ser um assassino, ou suicida no mínimo. Podia ter também uma arma lá dentro, podia ser perigoso. Afastei--me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadelas furtivas para dentro da mala assassina.
E o senhor de terno (fato) preto, gravata, meias e sapatos também pretos!
Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no olho esquerdo, corno, na certa. E manso. Corno manso sempre tem tiques, já notaram?
Observo as mãos, roía as unhas. Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável.
Como era infeliz esse meu personagem. Em certo momento tirou o lenço e eu já estava esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente, interrompendo o Paulo Coelho da outra.
Faltava um botão na camisa, claro, abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia ter dividas astronómicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode daqueles. Tingido.
Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que bunda imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbava? Seria esse o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus o caso é mais grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. Onde estarão os filhos dela? Acho que os filhos dela não comem a macarronada da “mama” há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também de quem mentia para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela se a conhecesse.
Acabou o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu psicanalista.
Conto para ele a minha viagem na sala de espera. Ele ri, ri muito e diz-me:
- O Ditinho é o nosso Office-boy.
- O de terno preto é representante de um laboratório multinacional de remédios e passa aqui uma vez por semana com as novidades.
-A gordinha é Dona Dirce, a minha mãe.

E você não vai ter alta tão cedo.

Luís Fernando Veríssimo (Escritor, cronista e jornalista, brasileiro, filho do grande escritor que foi Érico Veríssimo)

Esclarecimento:

Sou grande admirador da obra do autor da crónica que acima transcrevo e conheço o seu estilo bem como o refinado senso de humor.
Vem esta nota a propósito de há três semanas atrás eu ter assistido a um programa de televisão transmitido pela Rede Globo, denominado “Altas Horas” e no qual participava como convidado Luís F. Veríssimo. O apresentador do programa perguntou-lhe em determinado momento:
- É verdade que circulam pela Internet crónicas e outros escritos cuja autoria lhe é atribuída, mas que na realidade não são seus?
Ao que ele respondeu:
- Sim é verdade, não sei qual a intenção mas na verdade isso acontece!
Por isso meus amigos não leiam “gato por lebre” quem conhece a obra do autor percebe nitidamente o que é dele ou não.
A crónica acima transcrita parece-me ser dele mas não tenho certificado de autenticidade.

Ferreira Borges

2 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caru Borges
Uma boa crónica para dispor bem e esquecer, por momentos,as arrelias que nos consomem...
As minhas desculpas pelo atrazo na publicação. A saúde não vai bem e não tenho aberto o blog nestes últimos 3 dias. Espero "arribar" com a consulta específica que tenho marcada para amanhã e com os tratamentos necessários.
Um abraço
Rogerio

A. palmeiro disse...

Amigo Rogério

Suspeitei exactamente que haveria algum problema de saúde.
Tenha cuidado e espero uma rápida recuperação.
Escreverei ainda hoje ou amanhã para o seu endereço.
Um abraço e o desejo de que melhore rapidamente.
Borges