domingo, 1 de maio de 2011

FÉRIAS EM VILA DE FRADES

de  Lina Vedes

Estamos em Julho de 2007.
Como é possível ter conseguido reter na memória umas férias passadas no Alentejo em 1946/47?
Claro, desse passeio a Vila de Frades, Cuba, existem lacunas, pontos completamente apagados. No entanto, há episódios que permanecem, tão nítidos, que me dão a sensação de terem acontecido ontem. Sei que o passeio foi em tempo de Verão e que na casa para onde fui circulavam pessoas, todas mais velhas do que eu. Não sei porquê e como fui para lá, quanto tempo lá estive, o nome e a cara das pessoas que me receberam, e como regressei.
Tinha 6 ou 7 anos.
Sempre vivi em Faro, que na altura mais parecia uma vila (embora capital), com pequenas habitações, trânsito automóvel quase nulo e todos a conhecerem todos.
Nunca saíra da casa dos pais, e talvez por isso, a absorção de todas as vivências foi integral.
Vila de Frades era um local pacato, tranquilo, totalmente diferente de Faro.
A primeira imagem que guardei, religiosamente, é de uma rua que subia e curvava à esquerda, com casas térreas, alinhadas, muito branquinhas, com grandes chaminés, com postigos nas portas e degraus de acesso.
Lembro as noites sentados em grupo, no sítio onde cozinhavam, debaixo da chaminé, a contar histórias, anedotas, poesias, rezas, a entreter o tempo.
Uma senhora fazia meia, mas interrompia o trabalho lançando aos outros a sua sabedoria e experiência de vida. Como gostava de ouvi-la e como ela conseguia encantar, não só a mim, mas a todos os que a rodeavam. Todos bebíamos as suas palavras, um legado do passado, transmitido ao presente que haveria de se oferecer ao futuro.
Havia noites que não ficávamos em casa, íamos para a rua, com cadeirinhas baixas para nos sentarmos.
O ar que respirávamos era puro, parecia santo. A conversa focava o trabalho, a luta pelo pão, pela sobrevivência, revelava o amor pela terra, pela família, pelos amigos, todo o sofrimento da alma.
Ao longe ouviam-se vozes que mais pareciam o sussurrar do vento. Aos poucos, esses sons, iniciados mansamente, iam crescendo de volume e todos nos quedávamos como que encantados a ouvir, embalados, dando-nos a sensação de colo materno…
Para quê inventar contos de fadas, se nós estávamos ali a ser personagens de uma história de encantar?…
Bastava fechar os olhos, ouvir e voar…
Essas vozes de homens, num canto dolente, com uma sonoridade de palavras que mais pareciam alívio de sofrimentos e cansaços, revelavam o labor do dia-a-dia, o sabor do suor de quem trabalha.
Pelas ruas, vários grupos cantavam. Era a alma do povo que se exprimia de maneira singela e profunda.
Outro facto que me impressionou foi a ida a uma feira em Cuba e assistir a uma tourada.
Os carros de besta sem os animais, que pastavam e descansavam, foram encostados uns aos outros, formando um círculo cerrado. Dentro da arena, improvisada, homens provocavam touros e fugiam deles. Alguns eram apanhados e lançados ao ar e aconteciam situações caricatas. Os carros eram o refúgio dos que fugiam e dos que assistiam ao espectáculo. Ouviam-se palmas, risadas, ais… de tudo um pouco. Todos vibravam e saíam gritos de apoio:
- OLÉ!!
Imaginem o que sentiria uma criança de 6 anos, caída num Alentejo tranquilo, ingénuo, de pessoas que nada possuíam, mas tudo tinham, principalmente a grandeza de alma… Essa criança só tinha instintos; a idade não lhe permitia analisar, nem sequer lembrar-se de interrogar:
- Porque é que isto é assim?
O trajecto Cuba/Vila de Frades foi feito depois de um dia de emoções, numa carroça puxada por um animal levando mulheres, eu e o homem que a conduzia. O caminho era longo, mas tínhamos todo o tempo. O luar cheio impunha-se. Iluminava e aquecia-nos a alma. O carro chiava, dolentemente, deslocando-se sem pressas.
Eu, de olhos bem abertos, olhava à volta a paisagem lunar salpicada de árvores, que se adivinhavam no contraste lua/ sombra. Um cheiro a restolho, misturado com o das uvas por apanhar, mas maduras.
Ouviam-se os grilos, viam-se os pirilampos brilhando como pequenas estrelas.
Que paz!!!!…
A carroça lá ia vencendo o caminho, e as mulheres, para matar o tempo, iniciaram conversas de “lobisomens”, de bruxas, de acontecimentos macabros, de vida para além da morte, que me atormentaram a alma.
Um contraste de paz e medo.
Resolveram cantar e as suas vozes soavam na imensidão da planície e aí, sim, a tranquilidade foi plena.
Deitada no fundo da carroça, dominada pelo encanto do momento, tapada pelo luar, embalada pelas vozes dolentes que sussurravam e pelo baloiçar da carroça que, chiando, avançava, avançava… adormeci.

É tão lindo ver o campo,
Tão lindo!…
Trigueirinha alentejana:
Numa mão levas a foice,
Noutra, canudos de cana.

Com teu trajo à camponesa,
Tão lindo…
Com o teu chapéu ao lado,
Cantando lindas cantigas,
Ceifando,
As espigas do pão sagrado.
(autor desconhecido)

2 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Minha cara Lina Vedes
O meu obrigado pelo envio de uma das crónicas prometidas.
Dentro do meu ponto de vista, não interessa que seja "Bife ou Costeleta, "Costeleta ou Bife", interessa sim, que haja colaboração neste Blogue, porque, Bifes e Costeletas todos eramos amigos. Isso é que conta. Tenho pena de não existir um Blogue "O Bife", com quem poderíamos trocar colaboração.
Espero por mais.
Um abraço
Rogério Coelho

Anónimo disse...

Cara Lina.

Viva e parabens pela sua crónica.

O seu estilo de escrita, é popular mas rico na criação de imagens.

É aí que você me espanta, porque sendo uma pessoa da cidade, conhece a realidade fora da cidade.

O que você escreve, podia acontecer no Patacão, a minha terra. E o texto está tão bem elaborado, que eu ia lendo e pareca que já conhecia aquela história. Afinal era o Patacão que estava ali. Ou Vila de Frades, que é quase a mesma coisa.

Os serões na aldeia são assim e você tem uma memória espantosa, dos seis / sete anos.

O texto tem um pouco do carisma de Trindade Coelho, naquele conto do Fagote, a festa na aldeia,e um pouco de Manuel da Fonseca.

Já leu "O largo" do Manel da Fonseca? É do melhor que há. No mundo inteiro.

Como o seu texto. Muito bom. Gostei.

Ab.

João Brito SOUSA
o valor literário da crónica