sábado, 30 de julho de 2011

CANTINHO DOS MARAFADOS



(HOJE NO ALENTEJO)

Este episódio chegou ao meu conhecimento relatado pelo meu amigo Carlos Sousa, dono da herdade das Cumeadas, ali para os lados do Vale de Santiago.
Quero começar por identificar melhor o amigo Carlos. É um homem mais velho do que eu, tipo do lavrador alentejano de antigamente, sério, honesto e respeitado.
Durante muitos anos fui responsável pela contabilidade da herdade e sempre que necessário ia até lá. Para além da parte profissional, era para mim um grande prazer conversar com este homem, digo era, não porque ele tenha passado para outra dimensão, mas porque quem está agora à frente da exploração é o genro, os anos não perdoam.
Sempre havia água fresca da fonte, em várias quartas (a) de barro, em fila numa bancada própria e em vez do copo de vidro, um cucharro (b) de cortiça, a água tem logo outro beber. Se acrescentarmos a simpatia da dona Maria, criada da casa desde os onze anos, já lá vão mais de cinquenta, está preparado o ambiente para uma tarde daquelas em que nem damos pelo tempo passar.
Quando aqui uso o termo “criada da casa” mais não estou fazendo do que utilizando a forma como a dona Maria gosta de ser tratada. Ai de quem se atreva a chamar-lhe empregada doméstica, a gata e a cadela é que são domésticas, eu sou criada da casa e criada na casa. Ela comanda os destinos do monte como se tudo fosse seu. Nem sonha a categoria que consta na folha de salários, até eu corria o risco de ouvir das boas. Apesar de avisada de que um dia podem aparecer os sindicalistas ou organizações que achem que é humilhante o tratamento de criada, ela responde de imediato: - Aqui sem minha autorização ninguém entra e se alguém tentar jogar-me contra os patrões e os meninos vai-lhe acontecer uma desgraça. Nem no tempo das ocupações de terras o conseguiram.
Tudo isto para concluir que de seguida a dona Maria ia pôr a mesa sempre farta e que se alguém recusasse provar algo que ela aconselhasse seria logo convidado a ir dar uma volta ao alpendre porque não estava a fazer nada ali sentado na mesa. O menu era sempre de lamber os “beços”, nunca faltava o presunto curado na chaminé lá do monte, queijinhos de cabra e de ovelha, torresmos feitos lá em casa, as azeitonas adoçadas num dos potes guardados no escuro e um naco de toucinho com uns oito centímetros de altura, curado e salgado numa arca de madeira na cozinha e comido cru. Posso garantir-vos que não faz mal nenhum e é uma delicia.
O vinho feito também na adega do monte era qualquer coisa de divinal e que ninguém ousasse perguntar a graduação. Para quê saber um pormenor sem interesse perante um néctar dos deuses. O pão amassado pela dona Maria era de comer e chorar por mais.
Entusiasmei-me falando da dona Maria, e quase esqueci o objectivo principal desta crónica. Já agora e para completar este capítulo dizer que o marido da dona Maria é o “Manel das ovelhas”, Manuel Francisco, um seu criado, como ele próprio se apresenta, é ele o “moiral” das cerca de quinhentas ovelhas da herdade e aqui começa então a descrição que me foi feita pelo meu amigo Carlos:
- Estava o Manel com as ovelhas do outro lado da ribeira, a pastagem era farta e o gado já estava mais para o descanso, bem guardado pelos dois rafeiros alentejanos,
aproveitando a sombra do sobreiro porque o sol já começava a “acalar” forte.
O equipamento era sempre o mesmo, uma balsa (c) com uma bucha de pão, um naco de toucinho ou de linguiça, uma pinga de vinho. Em dias com as manhãs mais frias levava os safões (d) a pelica (e),o cajado e a espingarda, podia aparecer uma perdiz ou quem sabe uma lebre e a ceia estava garantida.
Naquele dia no silêncio da manhã já avançada, ouviu-se um tiro e a alguns metros do local onde se encontrava o bom do Manel, caíram mortos dois trigueirões (f) nem se levantou do local onde estava, encostado ao sobreiro. Poucos minutos depois chegaram junto dele dois indivíduos que se identificaram como guardas da natureza e trava-se o seguinte diálogo:
- Então o senhor matou os dois trigueirões? Perguntaram!!
- Eu não matei os passarinhos!...
- Insistência de que matou
- Reafirmação com voz calma e pausada: - Eu nã matei os passarinhos.
Estava a discussão no auge quando, chamada pelos tais “verdes” apareceu uma patrulha da GNR.
Conversam com os ditos fiscais e finalmente dirigem-se ao Ti Manel.
- Bom dia Sr. Manuel!
- Diaaaa…
- Então conte lá o que se passou!
- Nã se passou nada! Esses gajos é que apareceram aqui a dizer que eu tinha matado uns trigueirões e eu nã matei passarinhos nenhuns.
Matou, não matei, matou não matei e por aí vai.
O cabo Matias já à beira da reforma, coçava a cabeça e não sabia o que fazer.
Até que o cabo, como se tivesse encontrado a chave do problema diz com alguma euforia:
- Ah! Mas aqui este senhor e apontava um dos “verdes”, diz que o senhor Manuel o ameaçou que lhe dava um tiro!
- Disse que lhe dava um tiro e se ele não desaparecer daqui depressa, dou-lhe mesmo!
O cabo queria resolver rapidamente o problema e cada vez a coisa se complicava
Mais.
- Mas porquê? Porquê essa ameaça tão grave?
Oh, senhor cabo, não é que esse malandro teve o descaramento de me desafiar, para ir com ele para trás daquela moita fazer porcarias dessas que os “homonãoseioquê” fazem, ele tá “pensando qa gente aqui é o quê” maricas?
Tudo piorou, os “verdes” ficaram embaçados, o cabo já não tinha mais cabeça para coçar, o outro guarda, jovem com poucos meses de serviço, não conseguia conter o riso, o ti Manel, calmo como sempre continuava na mesma posição, encostado ao cajado.
O cabo à beira de uma crise de nervos ainda perguntou:
- Então e o outro colega dele ouviu ele fazer-lhe essa proposta?
- Nã senhora ele disse isso, quando o outro foi ao carro deles para chamar vocês.
Porque maioral não anda com B. I. o ti Manel foi identificado por conhecimento e que depois alguém passaria no monte para o identificar formalmente, os verdes saíram de fininho e fiquei sem saber quem ficou com os trigueirões, porque o resto ficou por isto mesmo.
O ti Manel continua na velha calma e cumprindo a rotina de todos os dias, sem ser mais incomodado.

Para quem não conhecer os termos aí vai algumas definições.
a) - Quarta – recipiente de barro em forma de cântaro
b) – Cucharro – objecto em forma de concha usado para beber líquidos
c) – Balsa – Sacola feita em palhinha para transportar o farnel ao ombro, a alsa era um baraço de fio de sisal.
d) – Safões – perneiras só da parte da frente feitas em pele de ovelha
e) - Pelica – tipo de casaco sem mangas e que vai até ao meio da perna, também em pele de ovelha.
f) – Aves que existiam por todo o Alentejo e que hoje estão em extinção, encontram-se só em determinadas regiões e estão protegidas.
g) – Moiral – alentejanês de maioral

António Viegas Palmeiro

8 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Palmeiro
A saude não tem andado boa. 4 dias sem sair de casa com uma constipação marafada. Hoje saí de manhã e fui ao Forum, quando estava a ler o Correio da Manhã mais uma doença: "caganeira". Depois do almoço outra donça: "soltura" e passados 10 minutos outra doença: "diarreia".
Isto assim não anda nada bem, compadre.
Sobre o "Alentejo Hoje" gostaria de fazer uma pequena lembrança: "cucharro", também se utilizava no Algarve (e utilizei), era de cortiça. Não esquecer que na serrania Algarvia também há muitos chaparros.
Um abraço
Rogério

Palmeiro disse...

Amigo Rogério
Espero que essa constipação marafada vá embora logo, o tempo anda meio maluco e é preciso o maior cuidado. Relativamente às 3 doenças isso vai ao lugar rapidamente.
Em relação ao reparo sobre o "cucharro" tem toda a razão, também na serra do Algarve e onde existir um sobreiro deve existir essa util peça de artesanato.
Lembrei-me de uma piada que se conta por aqui.
Um fulano chega com sede a um montinho onde havia um poço.
Na beira do poço lá estava um cucharro e um balde para tirar água. foi um momento de felicidade.
Entretanto chega um velhota, bem velhota, que só tinha um dente na boca. Quando ia começar a beber reparou numa falha que o cucharro tinha, faltava-lhe um bocadinho de cortiça na beiradinha.
Olhou para boca da velhota, olhou para o cucharro e pensou, vou beber pela falha por comcerteza ela não bebe por ali.
Começou a beber e a velha diz:
- Que nem eu, só gosto de beber por esse lado.
Um dia eu conto sobre as minha raízes em Martinlongo (serra algarvia) a Albernoa (aldeia da planicie alentejana e a Faro)

Um grande abraço e as suas melhoras
Palmeiro

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Palmeiro
Obrigado pelas melhoras. As "três" doenças já passaram e a constipação marafada já está quase extinta.
Mas voltando ao cucharro, e eu recordo que na minha juventude ajudava a família (os maiores) na apanha da alfarroba, amendoa e figo, não dispensavam a "enfusa" feita de barro vermelho escuro, que refrescava a água e lá estava o cucharro pendurado no gargalo.
Bons tempos em que eu passava as minhas férias no campo a trabalhar.
Um abraço
Rogério

romualdo.cavaco@sapo.pt disse...

Lembro-me do Vale de Santiago, onde o Ezequiel tinha uma pinga formiádvel. Talvez o Palmeiro conheça a casa. Era correspondente bancário.

Jose Elias Moreno disse...

Quando o Romualdo se assumou à janela dos comentários, eu até pensava que ele ia falar do cucharro, para lhe dar outro nome pelo qual também era conhecido na Serra Algarvia e Baixo Alentejo; o corcho.
Este era também o nome atribuido aos cortiços ou colmeias artesanais, que produziam o melhor mel que alguma vez comi, e continuo a comer , sempre ao pequeno almoço,depois de um copo de sumo de laranja, e acompanhado de uma generosa pitada de canela.
Experimentem e vão ver que não há caganêra, constipação ou catarral que lhes chegue, nem de verão nem de inverno.
Claro, que esta receita, gratuita para os meus amigos, pode ser aviada, sem prejuizo do uso, e não abuso, da pinga formidável do Ezequiel, a que o Romualdo saudosamente se refere.
De África,
Com apreço e um
Gde Abraço.
JEM

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Tens toda a razão Zé Elias.
Eu agora estou óptimo e devo dizer-te que uma colher de sopa de mel e uma pequena porção de mel ajudaram-me a curar. E é bom para a tosse, limpa o colesterol e faz bem ao coração. Ao deitar e ao levantar.
Tenho tomado ao pequeno almoço chá de canela adoçado com mel.
Experimentem
Rogério

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

ALTERAÇÃO
No comentário anterior leia-se "uma pequena porção de canela"
Rogério

A. Palmeiro disse...

Olá boa tarde!
Agradeço os comentários e quero acrescentar algo mais ao que já foi comentado.
Quero garantir que relativamente ao Ezequiel de que o Romualdo falou, tudo farei para muito brevemente dar notícias.
Apesar de próximos estamos em concelhos diferentes (Odemira e Santiago do cacém).
Na referência feita ao "corcho" o José Elias tem razão, na verdade há regiões do baixo Alentejo, divisa com o Algarve em que dão esse nome ao "cucharro". No entanto caiu um pouco em desuso quando os espanhóis vieram para aqui tentar comprar cortiça,(o Amorim não deixou) uma vez que toda e qualquer peça de cortiça,
é designada por eles por "corcho)seja a cortiça virgem ou uma rolha.
É muito interessante o uso de certos termos nas duas provincias, não existe uma divisa para a lingua, existe sim uma diferença na maneira de dizer entre o algarvio e o alentejano, um bem calminho, o outro mais apressado.
Descobri há relativamente pouco tempo que o termo "tem avondo" é comum dos dois lados, eu estava convencido que era só alentejano, mas não, tembém é usado na serra do Algarve.
Existe em Beja, junto ao Tribunal um restaurante com o nome de "TEM AVONDO", e à entrada um quadro onde é explicado a origem do termo.
E agora tem avondo (chega) de explicações. Se alguem tiver curiosidade em ir conhecer deve ir com muitooooo vagarrrr. Tá sempre cheio!
Um abraço a todos
Palmeiro