Vidas retalhadas
Tinha uma
colega, Alexandra, que morava na Rua da Misericórdia, que andava comigo na
explicação da D. Gracinda, empregada nos Correios. A porta do quintal desta
amiga servia várias casas, era o nº 13 e ficava na Rua Manuel Belmarço. Todas as
casas que faziam canto com a R. da Misericórdia tinham quintais ao fundo que se
conjugavam e todos os moradores os partilhavam como um bem comum.
A Alexandra
tinha uma particularidade que me espantava. Assumia diferentes personalidades
sendo uma colega como as outras, conversando normalmente, ou parecendo viver
longe da normalidade.
Quando eu ia
para a explicação passava pelo quintal dela, chamava-a e se não respondesse ia
à porta da rua. Normalmente estava em casa ou no quintal, tinha uma vida
solitária, nunca senti a presença de um pai, e a mãe levava os dias na igreja,
rezando, esquecida da filha.
Abria-me a
porta, punha o indicador direito junto dos lábios, a pedir silêncio, com a mão
esquerda puxava-me para dentro de casa e com voz surda, confidenciava-me:
- Anda comigo,
vamos pelo quintal, devagarinho, eles estão à nossa espera. Vem atrás de mim e
faz o que eu faço. Não tenhas medo, são demónios bons e amigos.
Eu entrava no
jogo, era diferente e divertido.
Ela avançava e
eu seguia-a, mais parecíamos um gato perseguindo a presa, olhando à esquerda e
à direita, agachadas ou levantadas até atingirmos a porta para sair. Pegava nos
livros que tinha escondido num muro e íamos, tranquilamente, para a explicação
que ficava numa casa encostada à parede da muralha, no Largo de S. Francisco.
Eram 3 ou 4 casas, à entrada e à direita, que haviam sido construídas
aproveitando a parede do castelo e que hoje já não existem. A da explicadora
ficava na do meio.
Acontecia
estarmos a trabalhar e ouvirmos a porta da rua bater e, o marido da D. Gracinda,
com aspecto de grande felicidade estampada no rosto entrar na casa de jantar,
onde nos encontrávamos.
A explicadora tinha uma cara encarniçada, com
muitas “espinhas”, mais parecendo uma adolescente, uma pele bastante oleosa e a
boca sempre pintada de vermelho vivo. Quando falava com as pessoas,
gesticulava, batia, empurrava, e quando a conversa a entusiasmava, abusava de
tal maneira, que uma vez espalmou a minha mãe contra a parede.
Ao encarar o
marido, nessas ocasiões, ficava branca, transbordava de raiva e começava a
descarregá-la esmurrando-o no peito, nos braços, na barriga volumosa e
blasfemando:
- Continuas na
mesma. Trabalhar não é contigo. Chegas às tantas da madrugada, dormes toda a
manhã, almoças e desapareces. Não arrumas a louça que sujas nem a cama onde
dormes. Farto-me de trabalhar para te sustentar, grande malandro. Tenho de dar
explicações para pagar as tuas dívidas. Isto tem de ter um fim. Ou trabalhas,
ou rua….
Ia batendo num
desabafo de revolta contida, enquanto ele, agarrado à cadeira de braços que em
parte o protegia dos arremessos, continuava com a expressão de felicidade,
olhando-a com olhos de “carneiro mal morto”…
Cansada de
tantas palavras e gestos, a D. Gracinda começava a ceder e a amansar com o olhar
que ele lhe “jogava”, um olhar que era um pedido, utilizando um código gestual
que para nós era indecifrável.
Aos poucos,
ela suavizava, ele pegava-lhe na mão, puxava-a suavemente, todo ternura. Ela
ainda, num último estertor, clamava:
-Não!
Ele não desistia,
insistia, os olhos brilhantes, a boca com um sorriso “sacana”, a mão a avançar
pelo braço, a chegar-lhe à cintura, a puxá-la, com uma insistência sábia…
- Meninas vão
brincar para o Largo de S. Francisco que eu já as chamo.
Saíamos
felizes e contentes, correndo em direcção ao apeadeiro, pisando a terra, as
pedras, as covas. Atravessávamos a linha do caminho-de-ferro e ficávamos donas
das salinas!
Aqui, a
Alexandra não queria silêncio. Era um cavaleiro andante que corria pelo
labirinto de caminhos que ladeavam os tanques de água salgada. Esses caminhos
eram estreitos e altos com comportas de madeira maciça e grossa que serviam
para conter as águas. A água em baixo fazia remoinhos bastante fortes, tornando
o local perigoso mas nós, qual cavaleiros corajosos galgávamos todos os
obstáculos, brincando no nosso mundo de “faz de conta”.
Já não existem
essas salinas!
Voltávamos
para o trabalho, para a explicação da D. Gracinda e verificávamos que o clima,
entre o casal, tinha mudado.
O senhor marido
sentado na cadeira de braços da explicadora, rodeado de almofadas, com uma mesa
pequena na frente, coberta com uma toalha, dava a sensação que havia acabado de
saborear um bom petisco, daqueles que os homens gostam, com bastante gordura e
um bom vinhito a acompanhar…
Estava saciado
a digerir prazer!!!!!
A D. Gracinda
olha para o nosso trabalho, passa-nos outro e diz:
- Já volto.
Volta com um
prato cheio de comida fumegante, coloca-o na mesinha, na frente do marido.
- Come, meu
amor!
Olhámos uma
para a outra, espantadas, sem perceber nada…
- Ainda tem
fome??!!
Lina Vedes -
2010
Os nossos agradecimentos
pela colaboração, querida amiga.
Rogério Coelho
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