quinta-feira, 8 de outubro de 2015



O que se vivia na minha rua
Recordações dos anos 30/40

Era “moce” e as recordações daquele tempo abrem-se, não na minha imaginação, mas na minha memória. Parece que foi ontem. Mas já lá vão oitenta e alguns mais.
Tentarei passar a “gravação do filme” daquilo que a minha memória se lembra do quotidiano da minha rua, naquele tempo.
Abramos um parêntesis para focar algo de diferente.
Rapazinho, que eu era, não tinha brinquedos com a quantidade que hoje se vê. Muitos dos brinquedos imaginava-os. E, quando desejava alguma coisa, lutava para alcançar esse objectivo. As crianças de hoje não têm  imaginação, não lutam, nem se empenham, não convivem, porque não vivem, como nós vivíamos livremente. A ocupação de hoje é feita na frente de um televisor ou de outros aparelhos que a invenção tecnológica lhes proporciona. Falta-lhes a liberdade, que nós tínhamos de correr pelas ruas sem o perigo dos carros, dos assaltos ou… dos raptos. A nossa televisão era de facto a rua. Mas vejamos em pormenor o quotidiano que referi.

A minha rua

Manhã cedo e batiam à porta. Era a “Ti Chica” com o leite num cântaro de lata. Ou então, quando ela não podia, o rapaz a bater e a gritar “Leititos”. E lá ia a mãe com a vasilha para comprar a quantidade, para o café da manhã, de toda a família.
O carteiro batendo a todas as portas para entregar pessoalmente a correspondência. O homem das “carca-nholas”(ostras) a dois tostões a dúzia. A mulher das bananas e “alcagoitas”; por vezes passavam o “menino Xico”, o “Cuco” o “Gaiana” o homem das rifas a apregoar “do menino pr’á menina, da menina pr’ó menino é testão”. Tudo diferente daquilo que é hoje.
Mas continuemos, porque, estamos a ouvir uma sineta no cimo da rua, era a carroça do lixo puxada pelas bestas, a cheirar que tresandava, com os homens que recolhiam o lixo, dentro das alcofas, para despejarem na carroça, com o acompanhamento de uma praga de moscas.
E, logo a seguir, vinham os aguadeiros com os cântaros de barro, que enchiam no poço de S. Pedro, fazerem a distribuição.
A “Ti Maria”, e outras, com seus produtos hortícolas, e que eram pesados naquela balança já ferrugenta e desalinhada. Balança romana que devia valer hoje uma boa quantia de euros para os coleccionadores daquelas relíquias.
          E a carroça ali ficava parada no meio da rua, com as mulheres à volta, e sem paragem do trânsito. Não havia carros.
O homem do sal, numa pequena carroça, puxada pelo burro e que gritava “Sal e azar”, que a polícia de vez em quando o levava preso e que, depois de solto, voltava a vender o sal com o mesmo pregão.
Aproximava-se a hora do almoço, sentindo-se, por toda a rua, aquele cheirinho de boa comida.
E logo depois, verificava-se uma calmaria, naquele período de descanso sem burburinho.
Por vezes ouvia-se a gaita do caldeireiro ou do amola-tesouras, aquele que remendava com solda os tachos de cobre e punha “gatos” nos de barro, este com aquele barulho característico a amolar as tesouras e as facas.
À tardinha ouvia-se a correria louca dos ardinas com os jornais nas suas sacolas. Jornais que tinham chegado no rápido de Lisboa. Era uma “guerra” aberta entre o Vieguinhas e o Pardal apregoando o “Século” o “Diário de Notícias” e outros.
Por vezes observávamos desentendimentos entre as mulheres, com puxões de cabelo, por causa dos maridos ou das amantes.
Mais “filmes”, da minha rua, poderíamos contar no dia a dia da cidade, bastava um pouco mais de atenção.
Era assim o dia-a-dia da minha rua na cidade de Faro.
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Faro - Anos 30

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