quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

PEDAÇOS D'ONTEM



Neve em Faro

Estávamos nos últimos dias de Janeiro de 1954, fazia um frio de “rachar”. Na subida para o Liceu, enrolávamos o corpo nos casacos, abotoados até ao pescoço. Da boca saía “fumo” branco e o nariz gelava.
Para nós, jovens, era divertido transformar em brincadeira o rigor da invernia.
- Vamos todos a fumar para o Liceu!!!. ..
- O que dirá o reitor??? ..
Eu andava na explicação da Brites, que morava no Alto Rodes, para onde ia, de tarde, depois das aulas.
No dia 2 de Fevereiro, pela manhã, o frio era fora da normalidade, nem conseguíamos escrever tão geladas tínhamos as mãos.
À tarde, à saída da explicação, olho a rua e vejo-a toda branca e flocos a caírem do céu.
Era inédito, nunca tinha visto coisa igual, só no cinema ...


                                     Praça D. Francisco Gomes com neve
É necessário salientar que na época, estudávamos a formação de neve, granizo, nevoeiros e outras coisas mais, mas tudo era teórico e as gravuras dos livros eram escassas e a preto e branco.
Entro de novo, vou até à sala das explicações e digo: - D. Brites, parece que está a cair neve!!!. ..
- És parva ou quê? Neve? Impossível!!!. ..
Vou de novo para a porta da rua e fico extasiada com o espectáculo ... Seria mesmo parva? Não queria arriscar outro adjectivo menos favorável ...
Aguardei mais tempo, numa correcta observação, em pormenor, pus a mão de fora a aparar o que caía do céu, pus o pé no chão calcando o manto branco, abri os braços, já na rua, olhando o céu ... Flocos de neve caiam-me no rosto, no corpo encasacado, entro de novo em casa e digo:
- Venham ver!!!
A D. Brites, que tinha a filhita pequena ao colo, sentada numa cadeira baixa, quase joga a moça ao chão e corre pelo corredor da casa, em direcção à rua. Atrás dela todos os explicandos, em procissão descompassada.
- Oh! Oh! Incrível!!. ..
Nenhum dos presentes tinha visto neve, nem os vizinhos, que já se tinham apercebido de algo extraordinário, e apareciam às portas, todos de "boca aberta".
Começámos logo na brincadeira, raspando o chão com as mãos, fazendo bolas e jogando uns aos outros.
Finalmente, arranquei para casa, e no Largo do Carmo encontro
a mãe que me ia buscar, ao ver a minha demora.
O piso estava tão escorregadio, que nos tínhamos de agarrar uma à outra. Foi uma risada até casa. A neve continuava caindo e até parecia que o frio tinha quebrado.
O polícia sinaleiro, que estava de serviço na altura, era o Carlos, amigo da "pinga", que tinha o hábito de dar escapadelas, até à tasca do Fontinhas, beber um copito. Na tasca, havia sempre no balcão, um copo à sua espera. De fugida, no momento de menos trânsito, que ele controlava no Largo da Palmeira, ia até à tasca, emborcava o vinho sem respirar e saía lambendo os beiços.
Nesse dia de Inverno, o sinaleiro Carlos cambaleava no seu posto de trabalho, e pensámos que estaria "alegrote".
Estávamos todos às portas de casa, divertidos, apreciando o espectáculo e reparando que o céu tinha uma tonalidade diferente do habitual, estava brilhante como prata ...
A mãe presta mais atenção ao polícia, aproxima-se e pergunta-lhe se estava bem. O homem já não falava. Parado, no meio do largo, vestido com a farda de sinaleiro, coberto de neve, tinha gelado.
Trouxeram-no para minha casa, deram-lhe um copo de aguardente, limparam-lhe a neve, despiram-lhe o casaco dos galões, todo molhado e taparam-no com uma manta. A mãe telefonou para o posto e vieram buscá-lo.
No outro dia, a ida para o Liceu foi uma festa. A neve já não era fofa, era gelo escorregadio ...
A meio da manhã, tínhamos, nesse dia, duas horas seguidas de aulas com a D. Loide Chumbo, Português e Francês. Ninguém conseguia concentrar-se nos trabalhos e menos ainda com esta professora, que não conseguia dominar as turmas.
Estávamos de pé, numa algazarra ensurdecedora e gritávamos às janelas da sala de aula, para colegas que brincavam na rua. Então, a Adelaide Costa, sai da sala sem que a professora se aperceba e regressa batendo à porta, com insistência. Silêncio absoluto ... Será o reitor ... fizemos tanto barulho ...
- D. Loide, há autorização para irmos brincar na neve, na rua¬ diz a Adelaide.
Ninguém soube o que disse a D. Loide. Saímos de roldão, corremos pelo corredor, descemos as escadas e saímos para a rua.
Foi um espaço de tempo maravilhoso ... até aparecer o senhor Sortibão, muito "enrascado", a falar com a professora.
Voltámos para dentro e a D. Loide, levada pelo contínuo, foi directa à reitoria.
Sabemos que ela andou "murcha", durante uns tempos ... Sabemos, que todo o Liceu (sector moças) sofreu de inveja da turma FEMININA, que saíra à rua a brincar na neve ...

IN "PEDAÇOS D'ONTEM na cidade de Faro"
De Lina Vedes na 1ª pessoa

Colocação de Rogério Coelho
RECORDAÇÕES

FELIZARDO & GLORINHA

Por João Brito Sousa

O estabelecimento comercial Felizardo & Glorinha, que ficava situado ali à mão de semear da Escola Comercial e Industrial que frequentávamos, era outra escola, era o desenrascanço para o almoço com as sandes de cavala, os primeiros cigarros que se fumaram e ali se compraram (cinco tostões, três cigarros), foi talvez o primeiro bagaço, o primeiro copo de tinto e por aí fora.
O mais interessante que o estabelecimento tinha para nos dar, era, para além do que acima disse, sandes, tabaco e…. era carinho, pois os velhotes, respeitosamente, faziam claro o seu negócio, mas lia-se no seu olhar um pouco de ternura, dirigida sobretudo àquela classe social que aparecia na cidade pela primeira vez ou quase e que os da cidade apelidavam de “montanheiros”.
A cidade não nos facilitou a vida, tinha as suas normas, era um ambiente mais civilizado onde se andava de sapatos engraxados e luzidios enquanto nós, os recém chegados, vínhamos de botas cardadas. Nos anos cinquenta a rapaziada que melhores provas tinham feito na quarta classe faziam de seguida o exame à Escola Comercial e alguns também ao Liceu. Mas em termos de educação estávamos um bocado atrasados e foi neste domínio que o estabelecimento Felizardo & Glorinha desempenhou o grato papel de nos educar, substituindo, nalguns momentos os nossos pais.
Da minha parte têm reconhecidamente o meu agradecimento.
Não há ninguém ou quase ninguém do meu tempo que não se lembre do Ti Felizardo e da Ti Glorinha. Eram da nossa família, pertenciam-nos, compreendiam à nossa forma de estar, as nossas intenções, as nossas preocupações, as nossas más notas, as nossas companhias e davam-nos conselhos, principalmente a D. Glorinha, coração mais sensível, mãe também, que muitas vezes nos acarinhava em momentos mais ou menos difíceis.
Deixaram-nos saudades.
A Escola naquele tempo, recebia alunos de todos os lados, desde Messines a Vila Real de Santo António e quase todos iam até ao estabelecimento comercial Felizardo & Glorinha a qualquer hora do dia. Quem vinha do lado de Messines, chegava a Faro às seis horas da manhã e as aulas começavam às oito e quarenta e cinco, sobrava tempo para a brincadeira e para gastar o dinheiro da senha que se deveria comprar hoje para consumir amanhã.
Vida dura,,a de estudante, daqueles tempos.
Grandes frequentadores do estabelecimento éramos todos mas permitam-me que recorde aqui alguns nomes, pessoas inesquecíveis, que vinham dos arrabaldes, o Jaime e o Cevadinha, que vinham de bicicleta pedaleira, das Quatro Estradas de Loulé e Boliqueime, respectivamente, sempre a dar-lhe e, quando chegavam á Ti Glorinha, lá iam comer qualquer coisa e beber também, o Joaquim Xavier das Ferreiras e o Manuel Lima de Salir e tantos, tantos, tantos.
A Escola e as amizades, recordações, saudades, outros tempos, velhos tempos.
Muitos dos que frequentaram o estabelecimento já faleceram e quero dizer-lhes que os que conheci, continuo a conhecê-los porque eram meus amigos. Cito um nome em representação de todos, Luís Cunha, costeleta e familiar da Ti Glorinha, gerente do BPSM em S.Brás de Alportel e depois em Faro. Tudo gente boa em tempos difíceis. Quando o General Sem Medo esteve em Faro nós também estivemos. E vimos o General em ombros.
A Escola Comercial e o estabelecimento Felizardo & Glorinha, já desapareceram
Efeitos do tempo.