MINI-DRAMA
NO BECO DA
AMOREIRA
Ao entrar na “tasca”, pelo fim da tarde, Alfredo apercebeu-se do brusco saltar de
assunto entre o Zé barbeiro e o Chico
da Gertrudes, depois do olhar sibilino, inquiridor mas fugidio, com que ambos e
o proprietário o miraram. Sinal de que andava no ar coisa menos boa a seu respeito
e susceptível de induzir “lábia” prolongada ou acesa
discussão. Mas fez-se desentendido, saiu, foi à consulta, comprou os
comprimidos na farmácia e regressou à “tasca”.
É
agora que vai pôr tudo em pratos limpos. A consciência não a tem muito em sossego, nunca a tem,
mas desta vez cheira-lhe a mais uma das tramoias que as alcoviteiras do beco se
entretêm a montar e a dar-lhes corda.
“A Flor do Roxo"
está deserta. Nem o Zé, nem o Chico, ou quaisquer outros dos frequentadores.
Melhor assim. O Maurício está na jogada, porventura até mais que aqueles dois,
e o “papo-a-sós”
com ele não terá muito por onde
descarrilar. Senta-se ao balcão e pede um “medronhito”.
- Então que disse o doutor?
Não tens nada de ruim pois não? Pergunta
aquele.
- Não. Por aí não há azar. E
já comecei a tomar os comprimidos.
- Mas ó Maurício não disfarces... Não
penses que há bocado, lá por estar à pressa,
não reparei no jeito como tu, o Chico e o Zé olhavam para mim. E também percebi
que eles embrulharam a conversa quando eu entrei. Tem paciência, mas vais ter
de abrir o jogo. Há aí qualquer “marosca” que me “tão”
a esconder.
Maurício inclina-se e responde-lhe fitando-o:
- Olha “pá”, se tu ainda não
sabes, não sou eu que te vou contar. Não gosto de me meter nesses enredos.
Pergunta
- Bem me pareceu que anda
bicho no mato... E vocês “correm o fecho”, não é? “Porra”!
Que grandes compinchas me saíram.
- Não fiques assim, Alfredo.
Não leves a mal. Sabes bem que “badalar” certas coisas para um
amigo, ainda mais se está doente, é sempre um enrolo do caraças. Só te digo
isto: que anda bicho, anda. Mas não é no mato.
- Ó “pá”: não me venhas com
charadas, adverte Al-fredo.
Engole o resto do medronho, pousa o
copo e, com um ar sério, a rondar a ameaça, insiste:
- Eu já te disse que não tenho nada de
mau. E se és mesmo meu amigo, não te feches em copas. Também não há-de ser uma
coisa do outro mundo. “Tá’se” mesmo a ver que é mais uma
das bocas do costume. Já “tou” habituado. Vá lá, “abre
o saco”.
-
Sabes uma coisa? Se calhar já “piei” de mais. Mas se queres apanhar
o bicho, não precisas nem de ir longe nem de procurar muito.
- Maurício, duma vez por todas, deixa-te
de “bitates
pá”,
ou temos o “caldo entornado”.
- Calma aí… Desde quando é que tu és
homem p’ra não te aguentares com uma má notícia?
- Ó “pá”, isso agora não
interessa. E se é mesmo um sarilho do “catano”, eu vou sempre acabar por
saber, ou não vou?
- Pois, com certeza, o que muito me
admira é como ainda não soubestes...
- Mas ó Maurício, “eh pá”, ainda me fazes “saltar
a tampa”. Custa-te
assim tanto abrires a “matraca”? Ao menos dá-me aí um “lamiré”!
-
É o que tenho “tado” a fazer. Não percebestes?, esclarece aquele num tom quase
de escárnio.
- Não! Mas então vá, continua.
- Tudo bem. Mas prepara-te, segura-te.
- Já “tou” preparado. Anda
lá...
- Olha, se te puseres à “coca”, é mesmo na tua casa que vais
ver entrar o bicho.
- O quê? Espera aí,
responde-lhe Alfredo sobres-saltado. Estica a cabeça para o amigo, sonda-o bem
no fundo dos olhos e pergunta-lhe:
- Queres dizer que a minha Júlia?
- Querias saber... Pois é isso
mesmo. Nem se fala doutra coisa.
- Não me digas... Mas não, não
acredito. Só pode ser mentira. Mais uma boca porca daquelas velhas “cuscas”,
Não acredito!
- Fazes mal… Não falta muito
começam a chamar-te corno manso.
- A mim? Nããão! Se isso fosse verdade,
também havia de saber-se quem é o “gajo”. Ou não?
- Mas
sabe-se. É aquele papo-seco do banco- “Na tou” a ver...
- Ó “pá”: o “gajo” que está hospedado
na Ofélia...
-
O Rodrigues? Não pode ser! Não conheces bem a minha Júlia, “pá”.
Se ela quisesse pôr-me os cornos nunca era com um “lingrinhas” daqueles, um
escanzelado que até mete nojo. Ninguém me convence dessa.
- Então não te convenças. Mas
olha, também não precisas de espreme-la nem de te pores à coca. Eu é que não me
lembrei logo, mas ou tu tens andado muito distraído ou “tás” a ficar surdo.
- Que é
que queres dizer com isso?
- Então a tua vizinha, a
Etelvina, não tem um papagaio?
- Tem. Mas que é que o pássaro
tem a ver com o assunto?
- O que é que tem? Parece que só tu é que ainda
não o ouvistes, mas volta e meia lá “tá” ele:
- “Ó Rodrigues,
veste-te! O Alfrede tá chegar”!
- Eh “pá”!... Nunca ouvi, não, assevera
Alfredo de olhos esbugalhados. E num ligeiro balancear da cabeça para diante,
como que a sublinhar cada palavra, conclui:
- Mas
assim o caso já muda de figura...
- Agora tens é de ter calma, “pá”.
Vê lá o que vais fazer – aconselha Maurício.
- Tu vais
ver. Dá-me aí outro medronho!
- Vou dar
cabo do “sacana”!
- “Porra”! Não devia ter-te dito nada,
recrimina-se o taberneiro acabando de encher-lhe o copo, e acrescenta:
- Tem calma “pá”!
Não te metas em trabalhos!
- Quero lá saber de
trabalhos! Já disse: Eu mato o “gajo”! Não passa desta noite.
Emborca o medronho e sai desaustinado.
Júlia adormeceu e despertou
sozinha, mas sem sobressalto ou estranheza. Quando o Alfredo não vem jantar, já
se sabe. Meteu-se com os bêbados do Chico e do Zé e só vai aparecer à hora do almoço. Emboneca-se e desce para as
compras.
Pela certa, ferve mexerico na
mercearia da Gertrudes. Quando ali se juntam a Ofélia fadista, a velha
Etelvina, a mulher do Maurício e mais alguma, nunca falha. Só que desta vez
parece ser diferente. Em nenhuma
se vê o sorrisinho cúmplice, o olhar “pulando o ombro”, o ciciar das
palavras. Mal acabou de entrar, todas se calaram muito sérias. Júlia tem um mau
pressentimento e pergunta para o grupo:
- O que foi?.. Aconteceu alguma coisa?
- Não
se esteja a fazer de novas, que a culpa é toda sua, sabe bem, reponde-lhe a Ofélia.
- A culpa é minha? Culpa de quê?
- Ah não sabe? Coitadinha...
Não se arme em parva, escarnece a
mulher do tasqueiro olhando-a de viés.
- É tão esperta para certas coisas...
- Vocês é que devem “tar” parvas. Não sei do que é que “tão” a falar!
- Não sabe? Então não foi o
seu Alfredo que esganou o pobrezinho?, retalha a fadista com desdém, as mãos
nos quadris, e acrescenta:
- A si é que ele devia ter esganado, sua “puta”!
- “Puta” é você! Sua fadista de “merda”.
Eu não sei, não vi nada, nem me digam mais nada! Sou “muita” mulher e sei
respeitar o meu homem!
Tolhida de espanto, afogueada
de raiva, olhos chispando, adivinha-se que Ofélia vai atirar-se a Júlia.
A velha Etelvina vem suster o
iminente engalfinhar das duas.
Mas rompendo em soluços, Ofélia
grita:
- Ai não sabes? Então
porque é que foi, que ele, me matou o papagaio?
NOTA: - Uma história de ficção. Qualquer semelhança com pessoas, factos e lugares é pura coincidência.
CRÓNICA DE UM "COSTELETA" DIRECTIVO