quarta-feira, 28 de setembro de 2016

CRÓNICAS DUMA PROFESSORA APOSENTADA


AS CRÓNICAS DA NOSSA COLABORADORA E ESCRITORA

Lina Vedes

Aconteceu... 

   Chamava-se Maria João.
   Era linda, uma autêntica boneca, ataviada com harmoniosos vestidos elaborados pela mãe. Grandes saiotes engomados salientavam a roda das saias, laçarotes, rendas e fitas completavam o conjunto que nem a bata liceal, obrigatória, conseguia encobrir.
   Era simpática, com um sorriso permanente a abrir-lhe os lábios e um brilho no olhar revelando um interior bondoso, pacífico e compreensivo.
   Nos intervalos das aulas isolava-se sem o à-vontade necessário para se aproximar das colegas que, em grupo, riam falando sobre sexo ou contando anedotas.  
   Era bem comportada cumprindo, na íntegra, todas as regras de convivência, decoro e boas maneiras, estabelecidas pela sociedade, sabendo dosear a sua aplicação.
   Era aluna exemplar que durante as aulas sabia ouvir as matérias explicadas pelos professores, que a estimavam e elogiavam. As notas finais fazendo jus ao seu empenho não a levavam a distanciar-se como ser superior aos outros.
   Era filha única e prendada, de pais zelosos e preocupadíssimos com a sua “menina’

   Rodeada de múltiplos cuidados tinha explicador particular que ia a casa, ajudá-la na aquisição das matérias. Recebia, igualmente, aulas de piano e a mãe conduzia-a nos segredos culinários e na arte dos bordados.
   Era católica, ia à missa da Sé todos os Domingos e comungava. Saía de casa ladeada pelo pai e pela mãe, vestidos a rigor, com comportamento exemplar a ser seguido por todos.
   Aos Domingos, na parte da tarde, se o tempo estivesse agradável, os pais levavam-na a passear a locais escolhidos por eles, com objectivos definidos. Também a levavam a conferências, colóquios, concertos musicais porque sabiam que a vertente cultural era necessária para uma educação completa.
   Nunca, a Maria João pisou o chão a caminho do Liceu de Faro, porque o pai a levava e a recolhia à entrada e saída das aulas. Era lá colocada e retirada para ser introduzida em casa, a dar continuidade a todos os afazeres que lhe eram impostos. Não havia espaço para conviver, a sua presença junto da vizinhança era nula.
   Os pais viviam para ela, moldavam-lhe o caminho a seguir. Estava talhada para o sucesso.
   Era uma linda menina, bem comportada, bem ornamentada, prendada, habilidosa, inteligente, boa aluna e boa católica. Era uma linda menina que todos os pais desejavam nos anos 40/50/60...
   Andei com ela, na mesma turma, durante quatro anos e muitas vezes me interroguei, olhando-a e vendo-a tão serena, se não sentia vontade de ”quebrar” as amarras. Não gostaria, tal como nós, de correr, falar alto, injuriar ou andar à “porrada” com uma amiga?...
   Chamava-se António e tinha frequentado a Academia Militar.
   Apareceu em Faro em 1960. Era filho de “boas famílias” como se dizia na gíria farense. Tanto o pai como o avô tinham altos cargos no exército português.

   Concluído o curso viera para a capital algarvia como oficial a dar instrução aos recrutas.
   Alto, espadaúdo, bom porte, despertou de imediato, a curiosidade entre as meninas farenses e casadoiras.
   Aliada à boa figura transpirava boa educação. Era fácil encontrá-lo no Aliança, na Gardy, na Brasileira, no cinema ou em qualquer lugar público a agir com cavalheirismo pouco usual na juventude farense.
   Com muito tacto e muita diplomacia respeitava as normas jurídicas impostas, na época, pela autoridade e as normas de cortesia. Junto das senhoras era cerimonioso, dando-lhes todas as prioridades e deferências, sabendo saudá-las e mimá-las delicadamente.
   Era correcto, educado, brioso, digno e responsável.
   O destino juntou-os.
   Aconteceu!
   António foi visitar familiares amigos dos pais de Maria João.
   Encontraram-se, olharam-se e o cupido fez das suas, acertando em cheio no coração desarmado e nada experiente da jovem de
18 anos, com o ano liceal concluído e com entrada garantida na Faculdade de Medicina em Lisboa.
   Ele ao observá-la viu de imediato:
   - É a mulher que meus pais ambicionam para mim!
   Ela ao encará-lo.., não via nada... ficou deslumbrada!!!!!!!!!
   Ele passou, discretamente, a provocar encontros e ela descobriu, dentro de si, algo de diferente e a desejar ter objectivos na sua vida pessoal, sem a indicação paterna.
    Através de terceiros, os interesses comuns dos jovens, foram revelados aos respectivos pais.
    Tudo foi feito como mandava o “figurino’
   António apresenta-se como pretendente à mão de Maria e combinam, desde logo, a visita oficial dos pais dele.
   Um almoço oferecido pelos pais da noiva reúne as duas famílias, surge o anel de noivado recebido com palmas, elogios e lágrimas de felicidade.
   Nesse mesmo dia fica decidido pelos pais:
   - A Maria João iria para Lisboa com a mãe, para um apartamento já adquirido, e licenciar-se-ia em Medicina;
   - O casamento efectuar-se-ia após a conclusão do curso… 1965/66;
   - Casariam em Fátima;
   - Iriam viver para Sintra, numa casa solarenga, pertença dos familiares do noivo;
   - Ele pediria transferência para Lisboa, podendo visitá-la aos fins-de-semana.
   Tudo ficou programado!
   Tão ‘embebidos” e maravilhados estavam um com o outro que não absorveram as imposições “impingidas’ o destino traçado por pais ansiosos na construção da felicidade dos filhos...
   Quando encararam a realidade apercebem-se que lhes resta o mês de Agosto para namorar. Em Setembro a Maria João rumaria a caminho da capital, para um período de adaptação.
   Na cidade de Faro tudo se ouvia, tudo se via e tudo se espalhava de boca em boca...
    Surgem segredinhos, mais adivinhados do que reais. A experiência dos maldizentes como que os empurra para o abismo!
   Vozes afirmam:
   - Ela vai ao Largo de S. Francisco, fala com a sentinela da guarita e segue para o apeadeiro.
   - Ele sai pouco depois e percorre o mesmo trajecto.
   - Será que os pais dela estão a dormir?
   Em meados de Setembro a mãe transporta uma Maria João conformada, aceitando a separação, deixando que o bom senso imperasse e acreditando que a reflexão saberia dominar a paixão.
   Abalou mergulhada em dúvidas, com tristes presságios, com sombrias conjecturas...
   Animou-se quando António lhe aparece, passados poucos meses, com a transferência garantida.
   Finalmente!!!!
   Poderia partilhar com ele o drama que a torturava...
   Durante o reencontro ela olha-lhe, firme, nos olhos...
   Instintivamente sente que estes haviam perdido o brilho inicial e, que as palavras dele não lhe saíam do coração com a firmeza que ela desejava.
   Diplomada em calar a voz do coração, em dissimular desejos e tendo dentro dela uma forte insegurança, conclui de imediato:
   - O António já não me ama.
   Estremece e durante momentos fraqueja, perde a faculdade de andar... e de falar!
   Cala o que deveria contar!
   Em Angola acontecimentos trágicos iriam precipitar a vida deste casal. O Governo do Estado Novo disponibiliza para lá os primeiros contingentes militares (1961). Está declarada a guerra entre as forças armadas portuguesas e as forças organizadas pelos movimentos de libertação das Províncias Ultramarinas.
   António parte para a “Guerra de África” para combater os terroristas e defender as províncias portuguesas de África (era assim que se dizia e se ouvia).
    Maria João ficou só... perdida, amedrontada, insegura!!!!!!!!
   Tinha de encontrar um expediente para se subtrair ao drama que a dominava e que se estava tornando insuportável.
   Tinha o cérebro em fogo, o espírito numa revolta, o coração esmagado! Sentia a inutilidade da sua vida, a incapacidade de agradar, apanhada por um doentio complexo de inferioridade e numa depressão profunda... Sufocada vê todas as portas fechadas, não vislumbra uma nesga de salvação!!!
   Em Faro, inesperadamente, um grito de consternação é ouvido:
   - A Maria João matou-se!
   E dias depois:
    - Estava grávida!
    Entre o pesar das notícias uma voz anónima e implacável clama:
    - Como exemplo e modelo da nossa sociedade nunca poderia viver em paz, sendo mãe SOLTEIRA
!

    ACONTECEU!
 
    Lina Vedes


      22 de fevereiro de 2010 

NOTA DA REDAÇÂO: Os nossos agradecimentos por esta "Crónica", com uma história maravilhosa. Obrigado Lina. Fica-nos a dúvida, REAL OU FICÇÃO?
Roger.

POESIA

Da Costeleta Maria Romana, recebemos,  com a maior satisfação publicamos:


Luzes da Vida


Ventre rasgado p´la luz
Essa luz pura, inocente,
Em que ainda se produz,
A luz pouco transparente!...

Através da luz dos olhos,
Focamos a claridade,
Mas nub´lada, com abrolhos,
É a luz da Humanidade!

Sendo a luz do entendimento...
Um fraco potencial,
Caminhando, muito lento,
Esse bem fundamental...

Sublime a luz da humildade
A que destrói a ambição,
Por ser a luz da verdade,
Encaminha a perfeição!

É a luz da nossa mente,
Que comanda a Consciência
Uma luz forte, existente
Que ilumina a inteligência !

Mas a excelsa luz Divina,
A que brilha, sem cessar,
É a luz que nos domina,
A que nos há-de salvar!

Maria Romana

1º prémio – Academia Araucária – Brasil S/P