AS CRÓNICAS DA NOSSA COLABORADORA E ESCRITORA
Lina Vedes
Aconteceu...
Chamava-se Maria João.
Era linda, uma autêntica boneca, ataviada
com harmoniosos vestidos elaborados pela mãe. Grandes saiotes engomados
salientavam a roda das saias, laçarotes, rendas e fitas completavam o conjunto
que nem a bata liceal, obrigatória, conseguia encobrir.
Era simpática, com um sorriso permanente a
abrir-lhe os lábios e um brilho no olhar revelando um interior bondoso,
pacífico e compreensivo.
Nos intervalos das aulas isolava-se sem o à-vontade necessário para se aproximar das colegas que, em grupo, riam falando sobre sexo ou contando anedotas.
Nos intervalos das aulas isolava-se sem o à-vontade necessário para se aproximar das colegas que, em grupo, riam falando sobre sexo ou contando anedotas.
Era bem comportada cumprindo, na íntegra,
todas as regras de convivência, decoro e boas maneiras, estabelecidas pela sociedade,
sabendo dosear a sua aplicação.
Era aluna exemplar que durante as aulas
sabia ouvir as matérias explicadas pelos professores, que a estimavam e
elogiavam. As notas finais fazendo jus ao seu empenho não a levavam a
distanciar-se como ser superior aos outros.
Era filha única e prendada, de pais zelosos e preocupadíssimos com a sua “menina’
Era filha única e prendada, de pais zelosos e preocupadíssimos com a sua “menina’
Rodeada de múltiplos cuidados tinha
explicador particular que ia a casa, ajudá-la na aquisição das matérias.
Recebia, igualmente, aulas de piano e a mãe conduzia-a nos segredos culinários
e na arte dos bordados.
Era católica, ia à missa da Sé todos os
Domingos e comungava. Saía de casa ladeada pelo pai e pela mãe, vestidos a
rigor, com comportamento exemplar a ser seguido por todos.
Aos Domingos, na parte da tarde, se o tempo
estivesse agradável, os pais levavam-na a passear a locais escolhidos por eles,
com objectivos definidos. Também a levavam a conferências, colóquios, concertos
musicais porque sabiam que a vertente cultural era necessária para uma educação
completa.
Nunca, a Maria João pisou o chão a caminho
do Liceu de Faro, porque o pai a levava e a recolhia à entrada e saída das
aulas. Era lá colocada e retirada para ser introduzida em casa, a dar
continuidade a todos os afazeres que lhe eram impostos. Não havia espaço para
conviver, a sua presença junto da vizinhança era nula.
Os pais viviam para ela, moldavam-lhe o
caminho a seguir. Estava talhada para o sucesso.
Era uma linda menina, bem comportada, bem
ornamentada, prendada, habilidosa, inteligente, boa aluna e boa católica. Era
uma linda menina que todos os pais desejavam nos anos 40/50/60...
Andei com ela, na mesma turma, durante quatro anos e
muitas vezes me interroguei, olhando-a e vendo-a tão serena, se não sentia
vontade de ”quebrar” as amarras. Não gostaria, tal como nós, de correr, falar
alto, injuriar ou andar à “porrada” com uma amiga?...
Chamava-se António e tinha frequentado a
Academia Militar.
Apareceu
em Faro em 1960. Era filho
de “boas famílias” como se dizia na gíria farense. Tanto o pai como o avô
tinham altos cargos no exército português.
Concluído o curso viera para a capital algarvia como oficial a dar instrução aos recrutas.
Alto, espadaúdo, bom porte, despertou de
imediato, a curiosidade entre as meninas farenses e casadoiras.
Aliada à boa figura transpirava boa
educação. Era fácil encontrá-lo no Aliança, na Gardy, na Brasileira, no cinema
ou em qualquer lugar público a agir com cavalheirismo pouco usual na juventude
farense.
Com muito tacto e muita diplomacia
respeitava as normas jurídicas impostas, na época, pela autoridade e as normas
de cortesia. Junto das senhoras era cerimonioso, dando-lhes todas as
prioridades e deferências, sabendo saudá-las e mimá-las delicadamente.
Era correcto, educado, brioso, digno e responsável.
Era correcto, educado, brioso, digno e responsável.
O destino juntou-os.
Aconteceu!
António foi visitar familiares amigos dos
pais de Maria João.
Encontraram-se, olharam-se e o cupido fez das suas, acertando em cheio no coração desarmado e nada experiente da jovem de 18 anos, com o 7° ano liceal concluído e com entrada garantida na Faculdade de Medicina em Lisboa.
Encontraram-se, olharam-se e o cupido fez das suas, acertando em cheio no coração desarmado e nada experiente da jovem de 18 anos, com o 7° ano liceal concluído e com entrada garantida na Faculdade de Medicina em Lisboa.
Ele ao observá-la viu de imediato:
- É a mulher que meus pais ambicionam para
mim!
Ela ao encará-lo.., não via nada... ficou
deslumbrada!!!!!!!!!
Ele passou, discretamente, a provocar encontros e ela descobriu, dentro de si, algo de diferente e a desejar ter objectivos na sua vida pessoal, sem a indicação paterna.
Ele passou, discretamente, a provocar encontros e ela descobriu, dentro de si, algo de diferente e a desejar ter objectivos na sua vida pessoal, sem a indicação paterna.
Através
de terceiros, os interesses comuns dos jovens, foram revelados aos respectivos
pais.
Tudo foi feito como mandava o “figurino’
António apresenta-se como pretendente à mão
de Maria e combinam, desde logo, a visita oficial dos pais dele.
Um almoço oferecido pelos pais da noiva
reúne as duas famílias, surge o anel de noivado recebido com palmas, elogios e
lágrimas de felicidade.
Nesse mesmo dia fica decidido pelos pais:
- A Maria João iria para Lisboa com a mãe,
para um apartamento já adquirido, e licenciar-se-ia em Medicina;
- O casamento efectuar-se-ia após a
conclusão do curso… 1965/66;
- Casariam em Fátima;
- Casariam em Fátima;
- Iriam viver para Sintra, numa casa
solarenga, pertença dos familiares do noivo;
- Ele pediria transferência para Lisboa,
podendo visitá-la aos fins-de-semana.
Tudo ficou programado!
Tudo ficou programado!
Tão ‘embebidos” e maravilhados estavam um
com o outro que não absorveram as imposições “impingidas’ o destino traçado por
pais ansiosos na construção da felicidade dos filhos...
Quando encararam a realidade apercebem-se
que lhes resta o mês de Agosto para namorar. Em Setembro a Maria João rumaria a
caminho da capital, para um período de adaptação.
Na cidade de Faro tudo se ouvia, tudo se via
e tudo se espalhava de boca em boca...
Surgem
segredinhos, mais adivinhados do que reais. A experiência dos maldizentes como
que os empurra para o abismo!
Vozes afirmam:
- Ela vai ao Largo de S. Francisco, fala com
a sentinela da guarita e segue para o apeadeiro.
- Ele sai pouco depois e percorre o mesmo
trajecto.
- Será que os pais dela estão a dormir?
Em meados de Setembro a mãe transporta uma
Maria João conformada, aceitando a separação, deixando que o bom senso
imperasse e acreditando que a reflexão saberia dominar a paixão.
Abalou mergulhada em dúvidas, com tristes
presságios, com sombrias conjecturas...
Animou-se quando António lhe aparece,
passados poucos meses, com a transferência garantida.
Finalmente!!!!
Poderia partilhar com ele o drama que a torturava...
Poderia partilhar com ele o drama que a torturava...
Durante o reencontro ela olha-lhe, firme,
nos olhos...
Instintivamente sente que estes haviam
perdido o brilho inicial e, que as palavras dele não lhe saíam do coração com a
firmeza que ela desejava.
Diplomada em calar a voz do coração, em
dissimular desejos e tendo dentro dela uma forte insegurança, conclui de
imediato:
- O António já não me ama.
Estremece e durante momentos fraqueja, perde
a faculdade de andar... e de falar!
Cala o que deveria contar!
Em Angola acontecimentos trágicos iriam
precipitar a vida deste casal. O Governo do Estado Novo disponibiliza para lá
os primeiros contingentes militares (1961). Está
declarada a guerra entre as forças armadas portuguesas e as forças organizadas
pelos movimentos de libertação das Províncias Ultramarinas.
António parte para a “Guerra de África” para combater os terroristas e defender as províncias portuguesas de África (era assim que se dizia e se ouvia).
António parte para a “Guerra de África” para combater os terroristas e defender as províncias portuguesas de África (era assim que se dizia e se ouvia).
Maria
João ficou só... perdida, amedrontada, insegura!!!!!!!!
Tinha de encontrar um expediente para se subtrair ao drama que a dominava e que se estava tornando insuportável.
Tinha o cérebro em fogo, o espírito numa revolta, o coração esmagado! Sentia a inutilidade da sua vida, a incapacidade de agradar, apanhada por um doentio complexo de inferioridade e numa depressão profunda... Sufocada vê todas as portas fechadas, não vislumbra uma nesga de salvação!!!
Tinha de encontrar um expediente para se subtrair ao drama que a dominava e que se estava tornando insuportável.
Tinha o cérebro em fogo, o espírito numa revolta, o coração esmagado! Sentia a inutilidade da sua vida, a incapacidade de agradar, apanhada por um doentio complexo de inferioridade e numa depressão profunda... Sufocada vê todas as portas fechadas, não vislumbra uma nesga de salvação!!!
Em Faro, inesperadamente, um grito de
consternação é ouvido:
- A Maria João matou-se!
E dias depois:
- Estava grávida!
Entre o pesar das notícias uma voz anónima
e implacável clama:
- Como exemplo e modelo da nossa sociedade nunca poderia viver em paz, sendo mãe SOLTEIRA!
- Como exemplo e modelo da nossa sociedade nunca poderia viver em paz, sendo mãe SOLTEIRA!
ACONTECEU!
Lina Vedes
22 de fevereiro de 2010
NOTA DA REDAÇÂO: Os nossos agradecimentos por esta "Crónica", com uma história maravilhosa. Obrigado Lina. Fica-nos a dúvida, REAL OU FICÇÃO?
Roger.
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