sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

CONTO TRADICIONAL PORTUGUÊS

Cassima
Adaptado por Ataíde Oliveira

Há muitos, muitos anos, no tempo dos mouros, os soldados de D. Paio conquistaram o castelo de Loulé.
D. Paio não sabia que o governador tinha poderes mágicos...

Quando os soldados invadiram o castelo, o governador disse às suas três lindas filhas:

- Filhas, vou ter de fugir para Tânger porque os cristãos venceram! Infelizmente, não podem vir comigo.
Mas, um dia, eu prometo que volto!

Então, o governador levou as suas três filhas a um campo onde havia uma fonte e, nesse momento, começou a cantar uma melodia muito triste!

De repente, as três filhas desapareceram.

Entretanto, o governador, nessa noite, conseguiu arranjar um barco (lá para os lados da Quarteira) que o levou até à costa africana.

Primeiro momento

Era o governador do castelo de Loulé um homem dotado do dom da magia. Depois dos duros combates feridos em frente do castelo, reconheceu que a vila seria brevemente invadida pelos soldados de D. Paio. Na penúltima noite, quando todos descansavam, abriu uma das portas do castelo, e sem que o pressentissem, saiu acompanhado de suas filhas e encaminhou-se em direcção de uma fonte, a nascente da vila, aberta junto de um viçoso canavial.
Alguns cristãos, moradores em um aduar próximo, conheceram o governador e suas filhas; presenciaram então o governador aproximar-se da fonte e entoar umas preces tristes e monótonas, um pouco abafadas pelos soluços das três filhas. A música do canto era pausada, piedosa e de uma doçura angelical. Em seguida afastou-se ele da fonte, sozinho, com a cabeça inclinada sobre o peito, extremamente comovido. Na noite seguinte desamparou o castelo, acompanhado de toda a sua gente, e foram todos embarcar em Quarteira para Tânger, na doce esperança de que voltariam brevemente, acompanhados de grandes forças armadas, a retomar o castelo e a vila.
• *Loulé – vila no Algarve (região no sul de Portugal).
• *Aduar – do árabe ad-duuar, «grupo de tendas da população dos campos, formando uma povoação temporária».
• *Quarteira - vila no Algarve (região no sul de Portugal).
• *Tânger – cidade do norte de África.

Segundo momento

Em certo dia chegaram a Tânger alguns cristãos, cativos dos mouros, e entre estes um carpinteiro de Loulé. Vendidos em praça pública, foi o louletano adjudicado ao governador.
Ao primeiro relancear de olhos conheceu o artista o velho governador; fingiu porém não o conhecer. Em certo dia aproximou-se o governador do carpinteiro e pediu-lhe notícias de Loulé.- Quando dali saí, falava-se muito do encantamento das filhas do governador do castelo, respondeu o carpinteiro.
- Estás resolvido a prestar-me um grande serviço?
- O meu amo e senhor manda e eu obedeço.
- Preciso que vás ao Algarve desencantar minhas filhas.
- Por terra não sei o caminho, por mar nunca aprendi a guiar uma almadia.
- Acompanha-me ao meu quarto.
O carpinteiro acompanhou o amo, e viu no quarto sobre um par de alforges, e no meio do quarto um alguidar cheio de água.
O governador fechou por dentro a porta, olhou fixamente o artista, e disse-lhe:
- Antes de tudo quero que jures pelo teu Nazareno cumprir à risca tudo que te ordenar.
- Juro - respondeu o carpinteiro resolutamente.
- Então governador tirou de uma caixa três pães e disse:
- Em cada um destes pães está escrito o nome de cada uma das minhas filhas. Na véspera de S. João, à meia-noite, abeira-te da fonte onde estão encantadas, lança-lhe dentro um destes pães e dize: Zara; depois este e dize: Lídia; e o terceiro: Cassima. Ditas estas palavras retira-te para tua casa.
- Daqui ao Algarve deve ser muito longe.
- Vês aquele alguidar cheio de água?
- Vejo.
- Coloca-te daquele lado do alguidar e dá um salto para trás. Se o saltares de um pulo, encontrar-te-ás imediatamente às portas da tua vila; se o não saltares cairás afogado no mar.
- Estou pronto.
- Andarei pelo ar muito tempo? - perguntou o carpinteiro.
- Em breve o saberás.
O artista aproximou-se mais do alguidar e segurou com energia os alforges e os pães.
- Salta! -ordenou o governador numa voz cava e acentuada.

O carpinteiro deu um salto e desapareceu.
• *Almadia – do ár. Al-ma`adiâ - os burros que acompanham uma viagem (uma «jangada»).
• *Alforges – do ár. Al-khurj, - «sacola ou saco de viagem».
• *Alguidar – do ár. Al-giDar - grande recipiente.

Terceiro momento

E entretanto o carpinteiro atravessava como uma águia os ares e saltava os mares, chegando às portas da vila, ao romper da manhã.
Sentou-se a tomar fôlego, esperando que fossem abertas as portas.
Rompeu o sol no horizonte! Como é belo o nascer do sol na nossa província! Encaminhou-se para uma casa e bateu à porta. Apareceu-lhe a mulher e ambos se abraçaram. O carpinteiro, porém, depois de abraçar a mulher e beijar os filhos, subiu ao sótão e foi guardar os três pães dentro de uma arca usada, onde estavam as velhas alfaias, que de nada serviam.
Nas tardes dos domingos e dias santificados, saía o carpinteiro da vila em passeio à fonte e ali se conservava, horas inteiras, com os olhos fixos na água da fonte, esperando, a cada momento, ver lá no fundo alguma das mouras encantadas. Quando começava a escurecer, voltava para casa, e ia observar os três pães escondidos na arca.
Tantas vezes abriu a arca que a esposa, na ausência do marido, foi ver o que a arca continha. Viu os três pães e ficou surpreendida. Conteriam os pães algum dinheiro? Ou algum segredo do esposo apaixonado? Resolveu pedir informações ao marido.

- Não lhes toques - respondeu o marido visivelmente incomodado, quando a mulher o interrogou.
Esta resposta simples despertou a desconfiança na mulher. Em uma tarde de domingo, na ocasião em que o marido, debruçado na fonte, espreitava as mouras, subiu a mulher ao sótão, abriu a arca e deu, com uma faca, um grande golpe em um dos pães. Imediatamente começou a sair sangue pela cutilada. Amedrontada, a mulher curiosa escondeu o pão entre os outros e fechou a arca à pressa.
Nesse mesmo momento o marido, debruçado na fonte, ouviu distintamente um enorme grito saído do interior e da parte mais funda das águas. Sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e não soube explicar aquele fenómeno. A mulher nada contou ao marido.

Chegou a noite da véspera de S. João (noite igualmente festejada por mouros e cristãos). O carpinteiro sentou-se ao lado da fonte e esperou que desse a meia-noite. Logo que deu a hora marcada, tirou dos alforges um pão, lançou-o dentro da fonte, e disse em voz alta:
- Zara!
E apareceu um relâmpago.
- Lídia! - exclamou o carpinteiro, no mesmo tom de voz, lançando o pão à fonte.
Repetiu-se o mesmo fenómeno.
- Cassima! - disse no mesmo tom.
Soou um grito, repassado de dor, e as águas permaneceram quietas.
- Cassima! - repetiu o artista, num tom de voz forte e enérgico.
Então o carpinteiro viu uma formosíssima mulher.
- O que significa isto? - perguntou o carpinteiro.
- Significa que estou condenada a passar séculos e séculos nesta fonte - respondeu a moura,
soluçando.- E de quem é a culpa?
- De tua mulher, que me cortou de um golpe a perna direita.
- Minha mulher... Naturalmente não teve a consciência do mal que fez.
- Nem a culpo.
• *Alfaias - do ár. Al-haiâ de Al-hajâ - «roupa, objectos»

Quarto momento

Esperou o carpinteiro durante muitas semanas a retribuição que lhe fora prometida pelo pai das mouras.
Um dia, na praça sentiu-se arremessado ao ar, como se fora arrastado num tufão, e foi cair, sem perigo, na praça de Tânger. Julgou-se perdido quando se viu agarrado por diversos mouros, que o conheciam e o levaram à presença do velho governador.
O velho governador, logo que viu o carpinteiro, empalideceu horrorosamente! Despediu os mouros e ficou só com o artista.
- O que fizeste da minha querida Cassima, infeliz?
- Não fui culpado, senhor! - respondeu o carpinteiro.
- Bem sei, bem sei ! Os fados foram-lhe contrários. Tinha de ser, tudo estava escrito.
O governador entrou como em êxtase e disse profeticamente:
- Enquanto Al-Faghar existir, nele palpitará um mundo de corações sarracenos.
Disse estas palavras, e exclamou:
- Sai da minha presença!
- Para onde ir, senhor?
- Tens razão. Tenho contigo um compromisso, e não será um velho crente que faltará a sua promessa.
Nessa noite, por ordem do governador, embarcou o nosso carpinteiro em um barco veneziano, que o levou directamente a Faro. Conta-se que foram tão importantes as riquezas que o pai das mouras lhe oferecera que ele chegara a comprar todo aquele terreno ocupado pela fonte e hortas circunvizinhas.
Seja o que for, o que é certo e se acha confirmado pela tradição constante de centenares de anos, é que a moura Cassima ainda hoje, nas noites de Inverno, ou nas amenas de Verão, pranteia tristemente o seu encantamento; e diz-se também que são muitas as encantadas por aqueles arredores.
• AI-Faghar - topónimo de Algarve.

IN Ataíde Oliveira - (adaptado)

Colocado por Rogério Coelho - pesquisa na Net

OUTROS AUTORES

Sete Mulheres
Camilo Castelo Branco


O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram.
A primeira era uma órfã, que vivia da caridade de um ourives, amigo do seu defunto pai. Chamava-se Leontina. Fiz versos a Leontina, sonetos em rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando os quis dedicar a outra, dois anos depois.
Leontina não tinha caligrafia nem idéias; mas os olhos eram bonitos e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.
Era minha vizinha. Por desgraça também, era meu vizinho um algibebe que morria de amores por ela e, à conta deste amor, se ia arruinando, por descuidar-se em chamar freguesia, como os seus rivais, que saíam à rua a puxar pelos indivíduos suspeitos de quererem comprar. Aristocratizara-o o amor: envergonhava-se ele de tais alicantinas, debaixo do olhar distraído da mulher amada.
Odiava-me o algibebe. Recebi uma carta anônima, que devia ser sua. Era lacônica e sumária: “Se não muda de casa, qualquer noite é assassinado”.
Pouco mais dizia.
Contei a Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em que estava minha vida, por amor dela. Indiquei o algibebe como autor da carta. A menina, que tivera o desfastio de lhe receber noutro tempo algumas, conheceu a letra mal disfarçada. Tomou-lhe raiva, fez-lhe arremessos e induziu a criada a atirar-lhe com uma casca de melão. Que lhe sujou um colete de veludinho amarelo e verde com listas encarnadas e pintas roxas. Que colete!
Passados tempos, Leontina desapareceu com a família; e, ao outro dia, recebi dela um bilhete, escrito em Almada. Dizia-me que o algibebe escrevera ao seu padrinho uma carta anônima, denunciando o namoro comigo. O padrinho ordenou logo a saída para a quinta de Almada.
O padrinho era o ourives, sujeito de cinqüenta anos, viúvo, com duas filhas mulheres, das quais amargamente Leontina se queixava. As filhas do ourives, receando que o pai se casasse com a órfã, queriam-lhe mal, e folgavam de a ver nas presas de alguma paixão, que a arrastasse ao crime, para assim se livrarem da temerosa perspectiva de tal madrasta.
E o certo é que o ourives pensava em casar com Leontina, logo que as filhas se arrumassem. Estas, porém, sobre serem feias, tinham contra si a repugnância do pai no dotá-las em vida. Ninguém as queria para passatempo e menos ainda para esposas.
Picado pelo ciúme, abriu o ourives seu peito à órfã, ofereceu-lhe a mão, e uma pulseira de brilhantes nela, com a condição de me esquecer.
Leontina disse que sim, cuidando que mentia; mas passados oito dias admirou-se de ter dito a verdade. Nunca mais soube de mim, nem eu dela; até que, um ano depois, a criada que a servia me contou que a menina casara com o padrinho e que as enteadas, coagidas pelo pai, se tinham ido para o recolhimento do Grilo com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres. Não sei mais nada a respeito da primeira das sete mulheres que amei, em Lisboa.

Nota:
Eu sei mais alguma coisa que merece crônica. Leontina subjugou o ânimo do marido; descobriu que ele era rico e gozou quanto podia das regalias do mundo, às quais vivera estranha até aos vinte e quatro anos. O ourives tomou gosto aos prazeres e esqueceu o valor do dinheiro, exceto o que dava às filhas, que lhe saía da secretária com pedaços de vida. Começaram pelos arlequins e pelos touros e acabaram no Teatro de S. Carlos o refinamento do gosto.
Leontina andou falada na sua roda, como esposa fiel e admirável vencedora de tentações. Quase todos os amigos particulares do marido a cortejaram, sem resultado. Deu bailes em sua casa, donde era freqüente saírem os convidados penhorados, às quatro horas da manhã; mas, duma vez, não saíram todos; ficou um escondido no quarto da criada, e lá passou o dia seguinte.
O ourives ignorou muito tempo que a sua lealdade não era dignamente correspondida: porém, suspeitando um dia que a criada o roubava, fez-lhe uma visita domiciliária ao quarto, sem prevenir a esposa, e achou lá o filho do seu primo Anselmo, dormindo sobre a cama da moça, com a segurança de quem dorme em sua casa. Estava de moiras amarelas e vestia um chambre de lã do dono da casa! É o escândalo e mangação!
Foi chamada Leontina a altos gritos. Acordou o filho de Anselmo e foi procurar na algibeira do paletó um revólver. O qüinquagenário viu cinco bocas de ferro, mais persuasivas que a boca de ouro de Crisóstomo, o santo.
Passou ao andar de baixo e gritou pelo código criminal. Leontina tinha fugido para casa da sua amiga e vizinha D. Carlota, pessoa de hipotética probidade.
O escandaloso possessor do chambre despiu-o, vestiu-se, sacudiu as moiras amarelas, sentou-se a calçar as botas, acendeu um charuto, desceu as escadas serenamente e encontrou-se no pátio com dois cabos de polícia e um municipal. Dali foi para o administrador, que o mandou reter até ulteriores explicações.
Leontina, dias depois, foi para o Convento da Encarnação, onde esteve dois anos e donde saiu a tomar caldas em Torres Vedras, por consenso do marido, que a foi lá visitar e de lá foi com ela à exposição a Londres. Da volta da viagem, o ourives morreu hidrópico, legando às filhas umas inscrições, que rendem para ambas um cruzado diário, e à esposa uma independência farta em títulos bancários e em gêneros de ourivesaria.
Consta-me que Leontina se lembrara então de Silvestre; mas ignorava que destino ele tivesse. Incumbiu um compadre de indagar se estava no Porto o homem; a resposta demorou-se alguns dias, sete, creio eu, e ao sexto já ela estava em indagações da vida e costumes dum sujeito de bigode e pêra, que à mesma hora de cada tarde lhe passava à porta num tílburi, tirado por uma orça. Fácil lhe foi saber que o sujeito fora, cinco anos antes, algibebe, tirara o prêmio da Loteria de Espanha e fechara a loja. Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a casca de melão.
Que mudança de cara e de maneiras ele fizera! O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. Eu tive ocasião de os ver ontem no seu palacete a Buenos Aires.
Estão gordos, ricos e muito considerados na rua.


IN Camilo Castelo Branco – Coração, Cabeça e Estômago

Colocado por Rogério Coelho (extraído da Net)