sábado, 4 de dezembro de 2010

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A Senhora
Eça de Queiroz

No ano de 1474, por toda a Cristandade tão abundante em mercês divinas, reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, onde herdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem e gentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas.
Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao lado e na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para além do adro, onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo, era o escuro e gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza, que já na madureza da sua idade, desposara uma menina falada em Castela pela sua alvura, cabelos cor de sol claro, e colo de garça real.
D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa Senhora do Pilar, de quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sangue bravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por vezes uma noite ruidosa de taverna com dados e pichéis de vinho.
Visitava todas as manhãs a sua divina madrinha e de lhe pedia, em três Ave-Marias, a bênção e a graça.
Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com lebréus ou falcão, ainda voltava à Igreja para, à saudação de Vésperas, murmurar docemente uma Salve-Rainha.
E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum ramo de junquilhos, ou cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e cuidado galante, em frente ao altar da Senhora.
A esta venerada igreja do Pilar vinha também cada domingo D. Leonor, a formosa mulher do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda e por dois possantes lacaios que a ladeavam e guardavam como torres. Tão ciumento era o senhor D. Alonso que, só por lho haver severamente ordenado o seu confessor, e com medo de ofender a Senhora, ficava espreitando sofregamente os passos e a demora.
Todos os lentos dias passava D. Leonor no encerro do gradeado solar de granito negro, não tendo, para se recrear e respirar, mesmo nas calmas do Estio, mais que um fundo de jardim verde-negro, cercado de tão altos muros, que apenas se avistava, emergindo deles, aqui, além, alguma ponta de triste cipreste. Mas essa curta visita a Nossa Senhora do Pilar bastou para que D. Rui se enamorasse dela tresloucadamente, na manhã em que a viu ante o altar, numa réstia de sol, com seus cabelos de ouro, olhos pendidos sobre o livro de Horas, o rosário entre os dedos finos, e branca, de uma brancura de lírio, mais branca entre os negros cetins à volta do seu corpo cheio de graças, sobre as lajes da capela, velhas lajes de sepulturas.
Quando depois dum momento de enleio se ajoelhou, foi menos para a Virgem do Pilar, sua divina Madrinha, do que para aquela aparição mortal, de quem não sabia o nome nem a vida, e só que por ela daria vida e nome, se ela se rendesse por tão incerto preço. Balbuciando, com uma prece ingrata, as três Ave-Marias com que cada manhã saudava Maria, apanhou o seu sombreiro, desceu levemente a nave sonora e no portal se quebrou, esperando por ela entre os mendigos lazarentos que se catavam ao sol. Mas, quando ao cabo de um tempo, em que D. Rui sentiu no coração um desusado bater de ansiedade e medo, a senhora D. Leonor passou e se deteve, molhando os dedos na pia de mármore de água benta, os seus olhos, sob o véu descido, não se ergueram para ele, ou tímidos ou desatentos.
Com a aia de olhos muito abertos colada aos vestidos, entre os dois lacaios, como entre duas torres, atravessou vagarosamente o adro, pedra por pedra, gozando decerto, como encarcerada, o desafogado ar e o livre sol que o inundavam. E foi espanto para D. Rui quando ela penetrou na sombria arcada, de grossos pilares, sobre que assentava o palácio, e desapareceu por uma esguia porta recoberta de ferragens.
Era, pois, essa a tão falada D. Leonor, a linda e nobre senhora de Lara...
Então começaram sete arrastados dias, que ele gastou sentado a um poial da sua janela, considerando aquela negra porta recoberta de ferragens como se fosse a do Paraíso, e por ela devesse sair um anjo para lhe anunciar a Bem-Aventurança. Até que chegou o vagaroso domingo: e passando ele no adro, à hora de Prima, ao repicar dos sinos, com um molho de cravos amarelos para a sua divina Madrinha, cruzou D. Leonor, que saía de entre os pilares da escura arcada, branca, doce e pensativa, como uma lua de entre nuvens. Os cravos quase lhe caíram naquele gostoso alvoroço em que o peito lhe arfou mais que um mar, e a alma toda lhe fugiu em tumulto através do olhar com que a devorava. E ela ergueu também os olhos para D. Rui, mas uns olhos repousados, uns olhos serenos, em que não luzia curiosidade, nem mesmo consciência de se estarem trocando com outros, tão acesos e enegrecidos pelo desejo.
O moço cavaleiro não entrou na igreja, com piedoso receio de não prestar à sua Madrinha divina a atenção, que decerto lhe roubaria toda aquela que era só humana, mas dona já do seu coração, e nele divinizada.
Esperou sofregamente à porta, entre os mendigos, secando os cravos com o ardor das mãos trêmulas, pensando quanto era demorado o rosário que ela rezava. Ainda D. Leonor descia a nave, já ele sentia dentro da alma o doce rugir das sedas fortes que ela arrastava nas lajes. A branca senhora passou – e o mesmo distraído olhar, desatento e calmo, que espalhou pelos mendigos e pelo adro, o deixou escorregar sobre ele, ou porque não compreendesse aquele moço que de repente se tornara tão pálido, ou porque não o diferenciava ainda das coisas e das formas indiferentes.
D. Rui abalou, com um fundo suspiro; e, no seu quarto, pôs devotamente ante a imagem da Virgem as flores que não oferecera, na igreja, ao seu altar. Toda a sua vida se tornou então um longo queixume por sentir tão fria e desumana aquela mulher, única entre as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coração ligeiro e errante. Numa esperança, a que antevia bem o desengano, começou a rondar os muros altos do jardim – ou embuçado numa capa, com o ombro contra uma esquina, lentas horas se quedava contemplando as grades das gelosias, negras e grossas como as dum cárcere.
Os muros não se fendiam, das grades não saía sequer um rasto de luz prometedora. Toda o solar era como um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás das frias pedras havia ainda um frio peito. Para se desafogar compôs, com piedoso cuidado, em noites veladas sobre o pergaminho, trovas gementes que o não desafogavam. Diante do altar da Senhora do Pilar, sobre as mesmas lajes onde a vira ajoelhada, pousava ele os joelhos, e ficava, sem palavras de oração, num cismar amargo e doce, esperando que o seu coração serenasse e se consolasse, sob a influência d'Aquela que tudo consola e serena. Mas sempre se erguia mais desditoso e tendo apenas a sensação de quanto eram frias e rígidas as pedras sobre que ajoelhara. O mundo todo só lhe parecia conter rigidez e frieza.
Outras claras manhãs de domingo encontrou D. Leonor; e sempre os olhos dela permaneciam descuidados e como esquecidos, ou quando se cruzavam com os seus era tão singelamente, tão limpos de toda a emoção, que D. Rui os preferiria ofendidos e faiscando de ira, ou soberbamente desviados com soberbo desdém. Decerto D. Leonor já conhecia: – mas, assim, conhecia também a ramalheteira mourisca agachada diante do seu cesto ä beira da fonte; ou os pobres que se catavam ao sol diante do portal da Senhora.
Nem D. Rui já podia pensar que ela fosse desumana e fria. Era apenas soberanamente remota, como uma estrela que nas alturas gira e refulge, sem saber que, em baixo, num mundo que ela não distingue, olhos que ela não suspeita a contemplam, a adoram e lhe entregam o governo da sua ventura e sorte.
Então D. Rui pensou:
– Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a ambos nos tenha na sua graça!
E como era cavaleiro muito discreto, desde que a reconheceu assim inabalável na sua indiferença, não procurou, nem sequer ergueu mais os olhos para as grades das suas janelas, e até nem penetrava na igreja de Nossa Senhora quando casualmente, do portal, a avistava ajoelhada, com a sua cabeça tão cheia de graça e de ouro, pendida sobre o Livro de Horas...

IN Eça De Queiroz – O Defunto

Colocado por Rogério Coelho

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Rogério Coelho

E ESCREVO AO SÁBADO

A TERTÚLIA TODOS BEM
Por João Brito Sousa


Quando eu cheguei à leitaria já o Artur estava sentado na nossa mesa, digamos assim, com o Old Parr em frente. Fez uma saúde à minha chegada, eu correspondi e dez minutos depois já estávamos todos. Gostamos de estar juntos, aquilo tem piada, uma vez um escreve umas coisas que lê e nós comentamos, outro declama e outro faz outra coisa qualquer.
Claro que há sempre um preâmbulo, o Pedro gosta de contar as suas aventuras fora de portas e pedimos quase sempre ao Tomás, que recite um poema, ao que, desta vez como aliás nas outras, ele acendeu a dizer o Cântico Negro do Régio.
Entretanto o Artur pediu aos presentes na sala se não se importavam de "aguentar un peu", porque o Tomás ia declamar um poema. Que não, que não fazia mal, que ouviam com muito agrado, faz favor senhor Tomás, esta sala é toda sua. E o Tomás levantou-se para declamar, quando um dos presentes, que não nos era familiar, se levantou e disse:
- Meus senhores, depois do senhor Tomás dizer o seu poema eu quero declamar o "Portalegre", igualmente do Régio, que é muito lindo.
Tomás olhou para nós, trocámos ideias com os olhos e o Tomás, que percebeu a nossa aceitação, disse.
- Sim senhor, temos muito gosto em ouvi-lo, mas isto tem de ter a autorização do senhor Simplício, o gerente da leitaria, porque nós já a temos há muito tempo, somos da casa, praticamente. Deixe-me eu dizer o poema que já falamos nisso.
- Ok, proclamou o desconhecido.
- Meus senhores e minhas senhoras, vou dizer o poema de Régio.
E como de costume disse e bem. Foi aplaudido, ruidosamente, digamos, o que gerou na sala uma tempestade num copo de água e ninguém mais ali declamou, porque o Simplício simplesmente disse que não queria mais declamações no salão de Chá e Leitaria, porque tinha que estar licenciado e não estava e não queria estar .
Depois de a sala serenar, o Pedro Santos um ex emigrante nos USA mas que adorava a França, disse que tinha preparado, para discutirmos na tertúlia de hoje, o tema "Franceses em Portugal nos fins do século XVIII".
- Mas porquê vir agora com o século XVIII? Indaguei eu.
- Por uma questão muito simples, disse o Pedro
- Questão simples!? disse o Tomás. Explica lá isso ó Mr. Pedro.
E Pedro disse.
- Eu penso que é impensável a compreensão do nosso tempo por alguém que insista em ignorar o passado.
- É razoável que se pense assim, disse eu.
- Então se é assim siga a leitura do trabalho, disse o Artur
- Concordas Tomás, perguntei.
- Siga a marinha, disse o Tomás
E o Pedro apresentou o seu trabalho.
- Na segunda metade do século XVIII, residia em Portugal um número considerável de súbditos franceses, que pertenciam às mais diversas profissões. Em Lisboa, por exemplo, viviam criados, cabeleireiros, relojoeiros, alfaiates e tecelões e ainda livreiros militares mercadores, etc
- E vingaram, perguntou o Artur.
- Eu vou estudar isso para a próxima reunião, disse o Tomás.
- A sessão termina aqui hoje, disse eu.
Mas antes de terminarmos, o declamador do Portalegre, chegou-se a nós e disse.
Eu conheço um espaço óptimo para a gente fazer coisas. Não querem ir ver.
- Tem aqui o nº do meu tm. Trate disso e depois diga-me. Ok.
- Sim senhor, eu digo.
E despedimo-nos.


jbritosousa@sapo.pt