quinta-feira, 3 de março de 2011


2. Jardim Manuel Bivar

Lina Vedes 

Conhecido, vulgarmente, pelo Jardim da Doca, era vivo e barulhento com imensa gente, crianças, jovens e adultos a procurá-lo para agradáveis convívios.
Os farenses, nas horas de lazer, enchiam o Jardim andando nele às cotoveladas, aos encontrões, conversando e rindo uns com os outros, indo e vindo desde o monumento a João de Deus até ao coreto.
Mantenho ainda o gosto de meditar, discorrendo placidamente, sentada num banco do Jardim da doca, olhando, ou antes, saboreando os fins de tarde, com os lindos "pores de sol" sempre diferentes e belos.
O Jardim da cidade era também procurado para encontros profissionais (trabalhadores e empregadores), marcando-o como um verdadeiro "centro de emprego".
Nele, junto do coreto, do Aliança ou do Largo das camionetas, homens honestos de fracos recursos, peças fundamentais no xadrez social da vida (na época) procuravam contratos de trabalho ocasional. Eram trabalhadores independentes, solicitados para pequenos arranjos domésticos ou outros serviços.
                                            Pôr-do-sol na doca
Normalmente eram educados, de falas mansas, respeitosos, dispostos ao trabalho fora de horas, incluindo domingos, e mal recompensados do esforço.
Creio firmemente, que história não é só o desfiar árido de acontecimentos relatados pelos compêndios, de forma cronológica. Os compêndios realçam o papel desempenhado pelos grandes senhores, esquecendo às vezes os operários que são a base da sociedade.
História é mais do que isso!
Impõe-se o dever de realçar o factor humano e todo o legado deixado por homens iguais a nós, que doutros homens o receberam.
A evolução das coisas e dos tempos não contém mistérios, somos nós os condutores dos factos, seremos nós a trabalhar para as gerações vindouras.
Era no nosso Jardim e arredores que se encontravam os moços de fretes';" os estivadores que carregavam e descarregavam os barcos da doca, carroceiros que implicavam a presença do ferrador, albardeiro, abegão, e até o aguadeiro e latoeiro, ardinas e vendedores de lotaria, carvoeiros, varredores, caiadores, vendedores de produtos da ria, limpa chaminés ... tantos ... tantos outros, cuja actividade desapareceu por não ser necessária, mas que deixaram a sua "marca", a sua história!. ..
                      Praça Ferreira de Almeida, Doca, Jardim Manuel Bivar
Não poderei esquecer e deixar de realçar o jardineiro Zé Nabo, responsável fervoroso pelo Jardim, que só ia a casa dormir, passando os dias no local de trabalho entre as flores, a poda das árvores, o corte rigoroso das sebes que o circundavam e almoçava da marmita preparada pela mulher, entre alfaias de jardinar, guardadas no coreto.
Havia mulheres que buscavam trabalho, mas o nome delas era divulgado "boca a boca", como recomendação de uma amiga. Eram as das limpezas, dos recados (porque não havia telefone), lavadeiras, parteiras/curiosas ...
Ainda há poucos anos, à volta do coreto, homens de outros tempos, engraxadores e retratistas "à la minuta", desenvolviam as suas actividàdes.
Recordo com saudade os engraxadores, à volta do coreto, disputando entre si os fregueses, com a sua caixa da graxa, de madeira, abrindo lateralmente, com o pé alto, contendo as tintas, as pomadas, as escovas, os panos de dar lustro, as talas para protegerem as peúgas dos clientes.
Trabalho modesto, independente, de pouca aplicação de capital e que permitia um bom contacto com o público.
Lembro-me do "Marrequinho" com a sua corcunda e permanente má disposição, do "Cow-boy" amantíssimo da "pinga", do "Mestre Zé Cuco" que punha tanto empenho no trabalho que comparava o brilho dos sapatos por ele engraxados com o dos espelhos da Casa Nobre e que estabeleceu o seu horário de trabalho cumprindo-o tão rigorosamente que deixava o freguês com um sapato por engraxar ao bater do meio-dia, dizendo:
-Volte às duas horas.
No local operavam ainda, na nobre missão do brilho do sapato, o "Zé Fitas", o "27", o "Pinau", o "Menino António", o "Velhote Macário", o "Ti Macoi", o "Gastaldo", o "Maçarico", o "Rato", o "Américo", o "Alvor" ...
Cada engraxadela custava uma coroa (5 tostões, 50 centavos), o mesmo preço do café e do jornal e os Sábados e Domingos eram dias de trabalho intenso.
Todos eles tinham orgulho na sua profissão, engraxando meio mundo, submissos mas vaidosos dos clientes ilustres que continuavam com eles ao longo de gerações.
Os sapatos ficavam a luzir e se alguma mancha, impertinente, permanecia estragando o seu brio profissional, uma boa "cuspidela" seguida de uma fricção, dada com "genica", à custa de esforço, punha o sapato num brinquinho, o cliente satisfeito e ele, engraxador, vaidoso da obra desempenhada.
Também fizeram história, no mesmo sítio, os retratistas "à la minuta", com o tripé que suportava uma caixa, com um pano preto a tapar a parte posterior evitando a entrada da luz', e a objectiva, na dianteira.
Era uma caixa mágica que nos reproduzia as caras!
O fotógrafo/artista metia a cabeça no pano preto, espreitava, corrigia a nossa posição, espreitava de novo, pegava num interruptor, retirava a cabeça e, olhando para nós, recomendava:
- Não se mexa! AtençãoL .. OLHA O PASSARINHO!!!!!!!!!!!!!!!!
                                              Retrato "à la minuta"
Tirada a fotografia, colocava a cartolina branca com as pessoas brancas de cor preta, "de pernas para o ar", em frente da câmara, voltando a dar o "clik" com o interruptor.
Mergulhava a foto numa pequena tina contendo um líquido, durante algum tempo. Retirava-a, olhava para verificar se estava perfeita e estendia-a numa corda, presa com uma mola de roupa.
Os últimos retratistas que me recordo, os irmãos Seita, tinham um cavalo de madeira e/ou papelão, para alindarem as fotografias infantis, montando a criançada ou colocando-os de pé junto do brinquedo.
A caixa/máquina/fotográfica era decorada, lateralmente, com retratos já realizados, que serviam de modelo e prova de eficiência.
Tudo era feito no momento, do positivo a fazer negativo, com arte, saber e desejo de bem servir.
Tratando da sua história de vida, os carroceiros e os moços de fretes permaneciam ali nas redondezas, aguardando trabalho.
Os moços de fretes autorizados, cirandando no Largo das camionetas, no café Coelho e no Madeira, tinham um boné com uma chapa numerada na copa e alguns, uma carreta para carregarem as malas dos imensos caixeiros-viajantes que chegavam a Faro com muita frequência.
Os ganhos eram fracos e o facto levava-os a perseguirem os passageiros para que lhes entregassem as bagagens. Assisti, uma vez, a um moço ser levado para a esquadra por um polícia, por ter assustado uma senhora ao querer levar-lhe, à força, uma pequena sacola.
Ainda recordo muitos desses moços de fretes, o "Pirilau", o "Má-língua", o "Macaco", o "Rato-china", o "Menino Chico" ...
Vejo, ainda, o Menino Chico correndo pela rua a transbordar de felicidade porque, finalmente, lhe tinham atribuído o boné de trabalho!
Lembro-me de um, que morreu novo, que assobiava magistralmente, deleitando-nos nas noites de Verão, quando toda a rua convivia à porta das casas ...
Existiam verdadeiros artistas na arte de barbear e de cortar o cabelo, que não se estabeleciam, por falta de recursos, e que procuravam clientes no Jardim. A compra do espelho e da cadeira do cliente, articulada e cómoda, implicava uma grande despesa ...
Eram procurados por pessoas acamadas e que não saíam de casa.
Não era o caso do meu avô Pinto, homem dinâmico, irrequieto, incapaz de se sujeitar a ficar sentado numa barbearia aguardando vez. Era uma perda de tempo, dizia ele ... Os jornais postos à disposição dos clientes não lhe serviam porque não sabia ler, as conversas não o cativavam porque versavam mulheres e ele, se as queria, procurava-as, não falava sobre elas. De futebol não gostava. Política para ele não existia, o trabalho é que era real; só sabia que havia um Salazar que mandava em tudo e em todos.
Vivia impondo à família a sua vontade, como rei de poder absoluto.
Uma vez no mês levava um barbeiro a casa a fazer-lhe a barba e cortar o cabelo. Eu assistia sempre a essas operações, observando, curiosa, os gestos ágeis das mãos do barbeiro que faziam rodopiar a navalha entre os dedos.
O avô sentava-se num cadeirão com uma opa enorme e branca amarrada ao pescoço, o barbeiro cortava o cabelo, seguindo-se a barba.
O ritual não variava. Numa taça era desfeito o sabão na água, formando uma espuma espessa e branca, que era espalhada pela cara do avô com um pincel largo, muito peludo e de cabo curto.
Pegava na navalha colocando-a aberta entre os dedos, com verdadeira mestria e fazia um teste, na unha, a verificar o corte. Quase sempre afiava a navalha, de um lado e do outro, durante muito tempo, na tábua afiadora.
Iniciava o trabalho nas "patilhas", com cuidado para ficarem certas.
Escanhoava com rapidez toda a cara, muito concentrado, a evitar cortes, desinfectava e espalhava uma loção refrescante pelo rosto.
Antes do avô se levantar ainda era energicamente escovado, com pó de talco, no pescoço e era-lhe retirada a opa, com um gesto muito teatral.
O avô olhava-se ao espelho do barbeiro/artista, olhava para mim e dizia:
- Queres cabelo, barba ou bigode?
Em Faro havia muitas barbearias espalhadas por toda a cidade. Sempre que passava perto de uma, achava curiosos os calendários, expostos em lugares de destaque, com fotografias de mulheres quase nuas, mostrando as pernas gordas e rosadas.
Recordo o "Ti Pedro", de cor negra, cauteleiro de profissão, que cirandava perto do coreto e calcorreava toda a cidade vendendo sonhos, ilusões e esperanças ...
E o Santo Toninho vendedor de caça brava que vinha na camioneta de Cachopo carregado com coelhos, lebres e perdizes, gritando:
- Ó caça brava! Ó caça brava!
Era baixinho, vestia um casaco maior do que ele, calçava uns enormes sapatos, carregava um peso superior às suas forças, preso à cintura e aos ombros, arrastando-se como que grudado ao chão ...
O Artur Costa, conhecido por Charlot, cirandava por ali na esperança de vender os seus lindos quadros que versavam, em quase todos, o moinho holandês. Em casa tínhamos dois na sala de jantar e eu levava horas a observá-los, fascinada pela cor.
Os limpa-chaminés que apareciam, quando chamados, amedrontavam-me com a sua figura sinistra, vestidos de negro e transportando vassouras e raspadores com enormes cabos.
Metiam-se pela chaminé e quando de lá saíam, a negrura da roupa espalhara-se pela cabeça, pescoço e mãos. Pestanejavam os olhos com insistência, a boca aberta, seca, revelando dificuldades na respiração.
Julgava que eram o "homem do saco", que nunca vi, mas fazia parte do meu imaginário, porque a mãe chamava por ele quando me recusava a comer a sopa.
- Não comes, vem o velho do saco e leva-te!
O medo abria-me a boca e a sopa era enfiada a um ritmo diabólico.
Mulheres vindas do campo carregando nos alforges dos burros repolhos, batatas, cenouras, nabos ... artigos das hortas, vendiam-nos pela manhã não só nas diferentes ruas de Faro como na Praça Velha, perto da estátua a João de Deus ...
Recordo ainda a curiosidade mórbida que permaneceu no meu espírito durante imenso tempo!
Amigas da mãe visitavam-na e travavam, entre elas, conversas envoltas em mistério ... Eu bem me punha a jeito, disfarçando o interesse, mas não entendia nada ... Sentia mistério no ar aumentado pelas saídas, nunca explicadas, das senhoras ...
Quais os segredos que as uniam? Ouvia frases soltas nada elucidativas! -Tens que te precaver!?
- Percebe de desmanchos!?
- Agora fica de resguardo e come caldos de galinha!?
Sentia que a minha mãe e as amigas estavam unidas por laços fortíssimos, numa solidariedade sofrida, comum a todas, por serem mães, esposas, avós ...
Problemas de MULHERES! ...
As práticas abortivas e ilegais eram reais, acima de tudo, por causas económicas com a impossibilidade de criar mais um filho.
O sentido de culpa, o pecado mortal, massacrava mais do que o risco da prisão ...
Era a dureza da VIDA!!!!!! Estávamos em 1940 e 1950!!!!!!!!
Num dia, não sei quando nem porquê, recordei todos estes homens e mulheres que gravitaram no Jardim Manuel Bívar, e um "flash" de luz clara mostrou-me a realidade e o sofrimento de todos eles...
Viveram no meu tempo de menina e moça na época em que, despreocupada e feliz, saía do Liceu, descia a Avenida, passava pela R. de Santo António e parava no Aliança. Conforme o interesse, integrada no grupo de raparigas amigas, voltava para trás, dizendo:
- Para além é Marrocos (referíamo-nos ao Jardim).
                                  Estátua a João de Deus - Jardim Manuel Bivar
Se decidíssemos alongar o passeio, íamos até à estátua de João de Deus, poeta das Crianças e da Mulher, grande figura humana ... e algarvio ... cumprimentá-Io!
A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa:
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

IN FARO retratos à lá minuta - Lina Vedes - na 1ª pessoa
Colocação de Rogério Coelho
Divertir ao Carnaval

Longe vão os tempos dos divertimentos carnavalescos em que jovens costeletas sexagenários e septuagenários participavam com a alegria e irreverência próprias da sua juventude.
As brincadeiras de carnaval eram em regra um divertimento de toda a população, independentemente da idade: Jovens e idosos gostavam de se divertir ao carnaval.
As brincadeiras, em grande número e muitas delas representativas do espírito criativo de homens e mulheres, jamais envolviam maldade ou maledicência. O humor era a grande vertente deste convívio.
Os bailes de máscaras, a passagem das mascarilhas de e para as colectividades ( passarelle no melhor estilo ), matinés dançantes com as crianças trajadas de palhaços, cowboys, superhomem, zorro, fadas, dançarinas de ballet, bruxas, polícias, soldados, etc, a moeda no chão, a cobra, o rato, o fio com a mola, o chapéu velho e pisado, dois homens com pernas peludas vestidos de mulheres passeando-se pelas ruas, o chocolate para provocar diarreias, os estalinhos, as bombinhas de mau-cheiro e com certeza muitos outros que a memória já não ajuda, recheavam a época.
A batalha das flores em Loulé, Moncarapacho e Vila Real de Santo António, eram o apogeu das festas carnavalescas.
Pela proximidade e pela grandiosidade, Loulé era a batalha das flores preferida. Os carros alegóricos cheios de prendadas meninas vestidas de harmonia com o tema do respectivo carro, enchiam-nos de ansiedade "amorosa", quando nos atiravam um saquinho cheio de serradura, e nós o devolvíamos percorrendo a avenida para cima e para baixo neste, joga para lá, devolve para cá. Era o início do encontro no baile que iria decorrer à noite, na colectividade ou no afamado "palácio do trigo", assim denominado por se efectuar no armazém da F.N.PT de Loulé.
No decorrer da passagem do corso e para brincarmos ao carnaval, aproveitávamos para nos aproximarmos das meninas passantes, de mão cheia de "papelinhos ou confétis " , pedindo licença e o mais gentilmente possível, friccionávamos a "boquinha" da dita menina. Os mais afoitos aproveitavam para segredar ao ouvido umas palavrinhas cheias de...doçura.
Das brincadeiras mais inócuas, recordo principalmente:
- Na rua de Santo António um grupo de rapazes, fazia passar um cordel por cima dos fios de telefone, e na extremidade era colocada uma mola de roupa. Aos homens, que na sua maioria usava chapéu, enquanto passeavam pela rua, era colocada a mola na aba do dito, que posteriormente era içado. Esbracejando o dono do chapéu procurava alcançá-lo e a rapaziada baixando e levantando delirava de divertimento. Era sempre num quadro de boa risota!
A outra brincadeira, consistia no dito grupo que antecipadamente se munia de um chapéu velho e um dos jovens retirava da cabeça dum cavalheiro passante, o respectivo chapéu e começavam a passar de uns para os outros.Quando o dono já estava baralhado, era colocado no chão o chapéu velho, para que todo o grupo pisasse. Imagine-se o desânimo e fúria do dono do chapéu.
A brincadeira da moeda, escolha anual do Alberto da casa das bicicletas no Largo de São Sebastião, consistia em colocar um fiozinho de cobre do meio do passeio para dentro da oficina e ligá-lo a uma bateria . O dito fio era disfarçado e na sua extremidade colocada uma moeda, em regra de um escudo. Todos dentro da oficina, aguardávamos a passagem das pessoas. Quem reparava na moeda, disfarçava olhando para um e outro lado, e quando sentia terreno livre, toca a apanhar a moeda...claro que apanhava um "choque" e a gargalhada da rapaziada não se fazia esperar, seguida duns bons momentos de brincadeira na rua.
No século XXI e em plena era tecnológica estas brincadeiras chamam-se "apanhados" e fazem-se todo o ano. Na altura eram apenas brincadeiras de carnaval, porque afinal no Carnaval tudo vale!

jorge tavares
costeleta 1950/56