quarta-feira, 11 de maio de 2011

MINIDRAMA NO BECO DAS LARANJEIRAS

Norberto Cunha

Ao entrar na tasca, pelo fim da tarde, Alfredo apercebeu-se do brusco saltar de assunto entre o Zé barbeiro e o Chico da Gertrudes. Depois, do olhar sibilino, inquiridor mas fugidio, com que ambos e o proprietário o miraram. Sinal de que andava no ar coisa menos boa a seu respeito e susceptível de induzir paleio prolongado ou acesa discussão. Mas estava quase na hora da consulta e fez-se desentendido. Engoliu o resto da bejeca e abalou.
É agora que vai pôr tudo em pratos limpos. A consciência não a tem muito em sossego, nunca a tem, mas desta vez cheira-lhe a mais uma das tramóias que as alcoviteiras do beco se entretêm a montar e a dar-lhes corda. “A Flor do Roxo" está deserta. Nem o Zé, nem o Chico, ou quaisquer outros dos frequentadores. Melhor assim. O Maurício está na jogada, porventura até mais que aqueles dois, e o papo a sós com ele não terá muito por onde descarrilar. Senta-se ao balcão e pede um bagacinho.
- Então que disse o doutor? Não tens nada de ruim pois não?
- pergunta aquele.
- Não. Por aí não há azar. E já comecei a tomar os comprimidos.
- Mas ó Maurício: não disfarces ... Não penses que há bocado, lá por estar à pressa, não reparei no jeito como tu, o Chico e o Zé olhavam para mim. E também percebi que eles embrulharam a conversa quando eu entrei. Tem paciência, mas vais ter de abrir o jogo. Há aí qualquer marosca que me 'tão a esconder.
Maurício inclina-se e responde-lhe fitando-o:
- Olha: se tu ainda não sabes, não sou eu que te vou contar. Não gosto de me meter nesses enredos. Pergunta a eles, se quiseres.
- Bem me pareceu que anda bicho no mato ... E vocês correm o fecho, não é? Porra! Que grandes compinchas me saíram.
- Não fiques assim, Alfredo. Não leves a mal. Sabes bem que badalar certas coisas para um amigo, ainda mais se está doente, é sempre um enrolo do caraças. Só te digo isto: que anda bicho, anda. Mas não é no mato.
- Ó pá: não me venhas com charadas... - adverte Alfredo. Engole o resto do bagaço, pousa o cálice e com um ar sério, a rondar a ameaça, insiste:
- Eu já te disse que não tenho nada de mau. E se és mesmo meu_ amigo, não te fechas em copas. Também não há-de ser uma coisa do outro mundo. 'Tá-se mesmo a ver que é mais uma das boca do costume. Já 'tou habituado. Vá lá: abre o saco.
- Sabes uma coisa? Se calhar já piei de mais. Mas se queres apanhar
 bicho, não precisas nem de ir longe nem de procurar muito.
- Maurício: duma vez por todas, deixa-te de bitates, pá, ou temos o caldo entornado.
- Calma aí… Desde quando é que tu és homem para te aguentares com uma má notícia?
- Ó pá, isso agora não interessa. E se é mesmo um sarilho do catano, eu vou sempre acabar por saber, ou não vou?
- Pois. Com certeza. O que muito me admira é como ainda não soubestes...
- Mas ó Maurício, eh pá: ainda me fazes saltar a tampa. Custa-te assim tanto abrires a matraca? Ao menos dá-me aí um lamiré!
- É o que tenho 'tado a fazer. Não percebestes? – esclarece aquele
num tom quase de escárnio.
- Não. Mas então vá. Continua.
- Tudo bem. Mas prepara-te, segura-te.
- Já 'tou preparado. Anda lá...
- Olha: se te puseres à coca, é mesmo na tua casa que vais ver
entrar o bicho.
- O quê? Espera aí... - responde-lhe Alfredo sobressaltado. Estica a cabeça para o amigo, sonda-o bem no fundo dos olhos pergunta-lhe:
- Queres dizer que a minha Júlia?...
- Querias saber... Pois é isso mesmo. Nem se fala doutra coisa.
- Não me digas... Mas não, não acredito. Só pode ser mentira. Mais uma boca porca daquelas veIhas cuscas! Não acredito.
- Fazes mal… Não falta muito começam a chamar-te corno manso.
- A mim? Naaão! Se isso fosse verdade, também havia de saber- -se quem era o gajo. Ou não?
- Mas sabe-se. É aquele papo-seco do banco.
- Não 'tou a ver. ..
- Ó pá: o gajo que está hospedado na Ofélia ...
- O Rodrigues? Não pode ser! Não conheces bem a minha Júlia, pá. Se ela quisesse pôr-me os cornos nunca era com um lingrinhas daqueles, um escanzelado que até mete nojo. Ninguém me convence dessa.
- Então não te convenças. Mas olha: também não precisas de espreme-la nem de te pores à coca. Eu é que não me lembrei logo, mas ou tu tens andado muito distraído ou 'tás a ficar surdo.
- Que é que queres dizer com isso?
- Então a tua vizinha, a Etelvina, não tem um papagaio?
- Tem. Mas que é que o pássaro tem a ver com o assunto?
- O que é que tem? Parece que só tu é que ainda não o ouvistes.
\Mas volta e meia lá 'tá ele: Ó Rodrigues, veste-te! O Alfrede tá chegar!
-Eh pá!... Nunca ouvi, não. - assevera Alfredo de olhos esbugalhados. E num ligeiro balancear da cabeça para diante, como que a sublinhar cada palavra, conclui:
- Mas assim o caso já muda de figura...
- Agora tens é de ter calma, pá. Vê lá o que vais fazer - aconselha
Maurício.
- Tu vais ver. Dá-me aí outro bagaço.
- Vou ver o quê?
- Vou dar cabo do sacana!
- Porra! Não devia ter-te dito nada - recrimina-se o taberneiro, acabando de encher-lhe o cálice. -Tem calma pá! Não te metas em trabalhos. Corre com ela!
- Quero lá saber de trabalhos! Já disse: Eu mato o gajo! Não passa desta noite.
Emborca o bagaço e sai desaustinado.
§
Júlia adormeceu e despertou sozinha, mas sem sobressalto ou estranheza. Quando o Alfredo não vem jantar, já se sabe. Meteu¬-se com os bêbedos do Chico e do Zé e só vai aparecer à hora do almoço. Emboneca-se e desce para as compras.
Pela certa, ferve mexerico na mercearia da Gertrudes. Quando ali se juntam a Ofélia fadista, a velha Etelvina, a mulher do Maurício e mais alguma, nunca falha. Só que desta vez parece ser diferente. Em ¬nenhuma se vê o sorrisinho cúmplice, o olhar pulando o ombro, o ciciar das palavras. Mal acabou de entrar, todas se calaram muito sérias.]úlia tem um mau pressentimento e pergunta para o grupo:
- O que foi?.. Aconteceu alguma coisa?
- Não se esteja a fazer de novas, que a culpa é toda sua, sabe bem - reponde-lhe a Ofélia.
- A culpa é minha? Culpa de quê?
- Ah não sabe? Coitadinha... Não se arme em parva - escarnece
a  mulher do tasqueiro olhando-a de viés. - É tão esperta para certas coisas...
- Vocês é que devem 'tar parvas. Não sei do que é que 'tão a falar!
- Não sabe? Então não foi o seu Alfredo que esganou o pobrezinho? - retalia a fadista com desdém, as mãos nos quadris
- A si é que ele devia ter esganado, sua puta!
- Puta é você! Sua varina de merda. Eu não sei, não vi nada, nem me digam mais nada! Sou muito mulher e sei respeitar o meu homem!
Tolhida de espanto, afogueada de raiva, olhos chispando, adivinha-se que Ofélia vai atirar-se a ]úlia.
Mas rompendo em soluços, a velha Etelvina vem suster o iminente engalfinhar das duas:
- Ai sabes? Então porque é que foi, que ele, que ele matou, me
matou o papagaio?...

"IN O TRIÂNGULO DE DEZEMBRO E OUTRAS FICÇÕES"

Colocação de Rogério Coelho