quinta-feira, 16 de julho de 2009

EXPOSIÇÃO AMNÍBAL RUIVO



Caros amigos:
Vai realizar-se uma segunda apresentação da minha obra.
Junto em anexo o respectivo convite.
Abraços ARuivo




Clique em cima para ler


Recebido e colocado por Rogério Coelho

REENCONTRO COM RAMOS ROSA

Norberto Cunha

Artigo de Norberto Cunha




(Publicado em Dezembro de 2004 no “Jornal Escrito” da “Ass dos Jorn. e Escrit. do Algarve)




Curvado sobre a mesa povoada de folhas de papel em branco, livros e o copo de leite intacto e já esquecido, ali estava ele, cabelo em desalinho, cabeça inclinada, olhos presos e pensar absorto nas palavras dum livro: L’Être et L’Autre de Levinas. A imagem que do poeta me ficara através dum programa televisivo relativamente recente e das fotografias publicadas por ocasião do seu doutoramento honoris causa, ajudavam-me a reconhecê-lo. E não resisti a cumprimentá-lo, embora prevendo que, após um desencontro de mais de quarenta anos, o surpreenderia com essa abordagem do desconhecido que, para ele, decerto eu me tornara.

“Desculpe interrompê-lo — disse — não é o poeta Ramos Rosa?”

Levantou para mim aquele seu sereno, fundo e fino olhar e respondeu-me “Sim.” Estendi-lhe a mão, felicitando-o pela sua obra e pelos tributos de reconhecimento que a nossa cidade tão justamente lhe prestou. Sorriu compreensivo, oferecendo-me, com um gesto, o lugar a seu lado e perguntou-me o nome.

Funcionando ao contrário, a ideia de que de mim o poeta não conservaria a menor lembrança, fizera esquecer-me de me apresentar. Mencionado o meu nome, e às primeiras referências que para ele carreava, logo tal ideia se confirmou. Ainda lembrei a minha colectânea de poemas publicada em 62, que então ele lera e de que me pareceu não ter desgostado. Mas depressa me abstive de prosseguir, evocando, como pensava fazer, aquele pequeno grupo de artífices da palavra onde ele sobressaía e eu era tão-só o tacteante neófito, quase um intruso — Casimiro de Brito, Afonso Cautela, Luiza Neto Jorge, Zeca Afonso, António Barahona da Fonseca... Para minha surpresa e contentamento, Ramos Rosa, que evitava responder-me “não me lembro”, já atalhava caminho, tornando insignificante a distância que entre nós crescera, como se as primeiras palavras que trocámos logo a tivessem percorrido e anulado, ou como se, por elas, o estranho que o abordava acabasse de por inteiro se lhe mostrar, desde o mais recôndito da sua subjectividade.

Ao modo de quem reata a conversa amistosa do dia anterior e num discurso trespassado de modéstia e humildade, confessava-me que fora a comoção então sentida com as palavras de alguém, profundo conhecedor da sua poesia, que o absolvera do acto de rendição à jactância ostensiva que, na ausência delas, o momento de pompa e cerimonial do seu doutoramento, eventualmente teria representado para si. E isto, se bem entendi, prendia-se com a problemática relação que, para ele, se gera entre a opacidade do conceito de verdade e a multíplice natureza desta, onde só o sentimento aparece como chave essencial de abertura do primeiro à segunda. A este propósito, se referiu depois ao seu fascínio pela Filosofia, em particular pelo pensamento de Levinas, avançando com a ideia de que aquela se configura como “história da dificuldade de pensar”.

A conversa, durante a qual mais eu me acomodava na posição de sôfrego ouvinte, preterindo a de interlocutor activo, seguiu depois outro rumo. Mostrou-me então, e ofereceu-me, um exemplar do texto, ainda inconcluso, de um artigo destinado ao Jornal de Letras, Artes e Ideias, no qual nos fala da realidade da poesia na sua específica liberdade; Falou-me da sua outra arte, a do desenho, e da exposição permanente que dela se faz no restaurante duma sua amiga; Permitiu-me que espreitasse o próximo livro, escrito em parceria com a sobrinha Gisela e cujos primeiros poemas logo tive o prazer de respirar. Enfim.

Não foi longo o tempo matemático que juntos ignorámos. Mas cada instante, expandindo-se na imensidade do horizonte nele aberto pelo poeta, enformava o momento de uma acessível eternidade.

Por último, presenteou-me com um desenho seu, ali nascido sob o meu olhar. Mas não sei se mais belo é o que nele se materializa, do que o foi no seu materializar-se pela fluidez do gesto na deriva do desenho, onde cada traço é a elegante sombra móvel de uma ave na serena curva do seu voo.

Um pouco antes, a chegada da sobrinha Gisela, por quem esperava, entreabrira já a porta àquele tempo de que nos evadiramos e agora nos solicitava para outros encontros. E com um cumprimento afectuoso nos despedimos sem compromisso nem prazo.

É improvável que a minha acidental aparição tenha trazido algo ao poeta. E nem imagino por que dele mereci as dádivas com que inesperadamente me distinguiu. Mas uma houve que só descrevendo-a a posso resgatar da sua intangibilidade e da minha finitude — os momentos de encantamento que vivi descobrindo-lhe no olhar, no gesto e na palavra, o brilho inconfundível dum espírito que, sustentando e transcendendo o corpo no seu declínio, se projecta e desdobra na temporalidade, como se por si mesmo fosse imperecível.

A. Norberto Cunha




Recebido e colocado por Rogério Coelho
ççççççççççççç