De Alfredo Mingau
Naquela manhã Braulio, tomando o pequeno-almoço com a esposa Virgínia, informou-a que estaria ausente por dois dias.- Onde te deslocas desta vez? Perguntou a esposa
Tenho umas reuniões importantes em Madrid, com vários clientes; assuntos muito importantes para a empresa. Desligarei o telefone para não ser incomodado. Não posso perder tempo, porque, vai ser muito apertado.
Despedindo-se, e pegando na sua pasta, Braulio Salvador entrou na garagem e saiu ao volante do seu Mercedes.
O empresário fizera os seus estudos na Escola Tomás Cabreira onde completara o 12º ano do Curso de Secretariado.
Com algum dinheiro herdado de seus pais, Braulio estabelecera-se como comerciante à frente dos destinos da sua empresa, comercializando na área de informática. A empresa vinha progredindo nos sectores primário e terciário. No primário como fabricante de “CHIPs” de memória para computadores pessoais e produzindo programas idealizados na empresa ou acedendo a encomendas dos seus clientes; no terciário, vendendo os seus produtos e outros que se relacionam com informática. Tanto o fabrico como a programação, tinham boa aceitação no mercado e a empresa, com uma dezena de empregados, mantinha-se com um bom ritmo de comercialização e uma boa perspectiva no futuro.
Dois dias depois da partida do marido, já perto do meio-dia, estava Virgínia Salvador no seu jardim a tratar das suas flores, quando o telefone tocou. Dirigiu-se apressada para a sala, levantou o auscultador e atendeu, “estou”. Do outro lado da linha, uma voz arrastada perguntou:
- E da casa do senhor Braulio Salvador?
- Sim, o que deseja?
- Desculpe incomodar, minha senhora, mas... como direi... Estou a falar da morgue e necessitava que alguém viesse identificar um corpo na sala mortuária, cujos documentos encontrados no morto dizem tratar-se de Braulio Salvador.
- Repita, por favor!
- Queremos ter a certeza de que o cadáver que se encontra aqui na morgue é do senhor Braulio Salvador.
Virgínia deixou cair o telefone, lentamente sentou-se numa cadeira e ficou estática, com o olhar no infinito.
- Está! Está! Ouvia-se a voz no telefone caído no chão.
Neste momento a porta da rua abre-se, entrando na sala Manuel Silva, sobrinho de Virgínia; estacou observando a tia que, sentada e com o olhar fixo, soluçava com uma lágrima a escorrer pelo rosto. Carinhosamente, sentando-se ao seu lado, perguntou:
- O que se passa tia, porque chora?
Com a voz embargada, titubeou
:- O tio... Manuel... o tio está morto… na morgue…, é preciso lá ir, por favor Manuel.
- Acalme-se tia, pode ser engano, eu vou saber.
Na morgue, o funcionário conduziu-o a uma sala fria e parou junto de um corpo, em cima da mesa de pedra, tapado com um lençol. Destapou.
- Reconhece?
Com a voz embargada pela comoção, fixando o olhar no rosto do morto, respondeu
- Não... não conheço!
- Vejamos este desta mesa, disse o funcionário, destapando o cadáver.
- Não... não sei quem é.
- Bem, só nos resta este.
E preparava-se para o destapar quando uma pessoa entra na sala exclamando:
- João, venha cá, tenho um assunto urgente e tenho pouco tempo.
O funcionário, olhando Manuel, disse:
- Verifique este, apontando para outra mesa, enquanto atendo o Dr. Delegado de Saúde.
Manuel aproximou-se da mesa, e comovido pela situação, lentamente começou a levantar o lençol pondo à vista uma carteira. Agarrou-a, abriu-a, e verificou que os documentos pertenciam ao seu tio; não se conteve, uma lágrima brotou e um soluço embargou-lhe a voz e, dirigindo-se ao funcionário que se aproximara:
- É de facto o meu tio, não tenho coragem para lhe ver o rosto.
- Muito bem, devem contactar uma agência funerária, para tratar dos trâmites legais e levantarem o corpo. Já aqui tenho o óbito assinado pelo Dr Delegado de saúde.
- Como foi que isto se deu? Perguntou Manuel.
- Segundo testemunhas, este senhor tropeçou na calçada e caiu desamparado, batendo com a cabeça no degrau de uma porta. Morte instantânea. O INEM não pode fazer nada.
Manuel saiu, curvado pela dor. Tinha uma grande estima pelo tio e era, por assim dizer, o braço direito na parte administrativa da empresa.
Passou por uma agência funerária e, logo de seguida, dirigiu-se para casa para fazer companhia à tia naquela hora de amargura.
Duas horas depois destes acontecimentos, a agência funerária telefonou, informando que tudo tinha sido tratado e que o corpo se encontrava na Igreja da Misericórdia, em câmara ardente.
Informada pelo sobrinho, Virgínia vestiu roupa de cor escura e desceu as escadas que conduziam à sala, onde o sobrinho aguardava.
- Vamos Manuel, disse, dirigindo-se para a porta da rua, sobraçando um bouquet de flores que colhera do jardim.
Abrindo a porta, Virgínia ficou estática, as flores caíram no chão; na sua frente com a chave na mão para abrir a porta, estava o marido.
- Salvador! Gritou Virgínia lançando-se nos seus braços, enquanto lágrimas de alegria corriam pelo rosto.
Já na sala, sentados no sofá, perante a admiração do sobrinho, tudo se esclareceu.
- À saída da empresa, quando me dirigia para o estacionamento, um indivíduo deu-me um encontrão, antes de entrar no carro. Depois dei por falta da carteira. Portanto o morto deve ser o ladrão. Coitado!
- A culpa também foi minha tio, disse o sobrinho, quando vi a carteira, não tive coragem para ver o rosto.
- Tantas lágrimas que eu chorei, Salvador! Tantas lágrimas.