terça-feira, 3 de agosto de 2010


A crise

Creio que a maioria das pessoas ainda não percebeu bem esta crise – e os economistas não estão a saber explicá-la com clareza. É verdade, como se tem dito, que há uma ‘crise nacional’ e uma ‘crise internacional’. Mas, depois desta evidência, a confusão que por aí vai é enorme.
Comecemos pela crise portuguesa.
Trata-se de uma crise profundíssima, potenciada por três factos capitais: o fim do Império, a passagem da ditadura à democracia e a entrada na UE. Tudo isso, que se pensava vir a ter um efeito benéfico na economia, produziu de facto consequências devastadoras.
O fim do Império limitou-nos o espaço vital, cerceou-nos matérias-primas e mercados, diminuiu-nos política e psicologicamente.
A passagem da ditadura à democracia (com o seu rosário de greves, nacionalizações, perseguições, saneamentos, reivindicações laborais insustentáveis, etc.) destruiu boa parte do nosso tecido económico.
A entrada na União Europeia e a abolição das fronteiras pôs-nos em confronto com economias muito mais avançadas, acabando de liquidar o que restava da nossa débil capacidade produtiva.
A crise internacional é de outra natureza. Ela decorre da globalização e tem duas vertentes.
Por um lado, os produtos feitos no Ocidente começam a não ter condições para competir a nível global com outros produzidos em países (China, Índia, Coreia, etc.) onde os salários e as regalias laborais são muitíssimo inferiores.
Por outro lado, as empresas tendem a transferir cada vez mais as suas fábricas e serviços de Ocidente para Oriente – o que significa que no Ocidente vai aumentar o desemprego e no Oriente vai acentuar-se a procura de mão-de-obra.
E, em consequência disso, no Ocidente baixarão os salários, acabarão muitas regalias sociais, numa palavra, será posto radicalmente em causa o tipo de vida que se fez nos últimos 50 anos.
No Oriente, pelo contrário, os salários tenderão a subir e o nível de vida crescerá. Assim, a crise que hoje se vive no Ocidente é de natureza diferente das anteriores. Antes, eram crises de crescimento do capitalismo dentro da sua área geográfica; agora, a crise tem a ver com a globalização do capitalismo. Repare-se que grande parte do planeta, que até pouco vivia fora do sistema capitalista, aderiu à sociedade de mercado: basta pensar nas adesões quase simultâneas da Rússia e da China para se ter uma ideia do abrupto alargamento da área do capitalismo nos últimos anos.
Os grandes grupos multinacionais, que antes estavam limitados a um determinado espaço territorial, hoje têm o planeta inteiro para instalar os seus centros de produção – podendo procurar os salários mais baixos, as melhores ofertas de mão-de-obra, as menores regalias dos trabalhadores. O planeta tornou-se um sistema de vasos comunicantes – onde, para uns viverem melhor, outros vão ter de viver pior. Para certas regiões subirem o nível de vida, outras vão necessariamente perder privilégios. Perante isto, perguntará o leitor: o que poderemos fazer para inverter o estado das coisas?
Basicamente, não há nada a fazer.
Os factores que potenciaram a crise nacional são irreversíveis – e a globalização não vai andar para trás. Assim, vamos ter de nos adaptar à nova situação, o que significa de uma maneira simples trabalhar mais e ganhar menos.
Os salários vão baixar (lenta ou abruptamente) entre 10 e 30%, os horários de trabalho vão aumentar (com a abolição total das horas extraordinárias), o 13º e 14º meses vão ficar em causa, a idade da reforma também vai ser ampliada (perto dos 70 anos), o rendimento mínimo garantido vai regredir drasticamente, o subsídio de desemprego também vai diminuir, a acumulação de reformas vai ser limitadíssima. Muitas “conquistas dos trabalhadores” na Europa, obtidas no pós-guerra, vão regredir. As leis laborais vão ter de ser flexibilizadas. O sistema de saúde não vai poder continuar a gastar o que tem gasto.
Preparem-se, porque não vale a pena protestar. O que não tem remédio, remediado está. Dizia há dias, com graça, Ernâni Lopes, a propósito do subsídio de férias:
Se dissessem a um americano: ‘Para o mês que vem não trabalhas e ganhas dois ordenados’, ele não acreditaria”.
Pois há muitos anos é esta a situação: não trabalhamos nas férias e recebemos o dobro. Isto vai acabar.
José António Saraiva
RC