sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PEQUENAS NOTAS

Parece que foi Vargas Llosa, o agora premiado com o Nobel, que disse que "a Literatura pode não nos fazer felizes mas evitará sempre que sejamos infelizes".

Vem isto a propósito dos textos, melhor dos bons textos, que têm sido publicados no blogue. Tem que se dar valor ao mérito. Indiscutivelmente. Porque dá trabalho e muito, manter esse bom nível, o que é motivo de enorme satisfação para mim.

Gostei de ler a "Galinha", um texto que não conhecia e que nada me dizia ser do VF, porque daquilo que sei, parecia-me ver no texto alegria a mais. O VF é um homem cheio de dúvidas existenciais e aquele não me parecia ser o seu estilo. Que é mais o que vai a seguir.

"Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.
Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não - e de que serve reconhecê-lo ou não? - como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.
Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas."

O texto cheirava-me mais a Alçada Baptista, um escritor de humor requintado.

Eça de Queiroz, foi quem me alimentou a vontade de ler e aos 20 anos sabia quase tudo de Eça. Aqui há dois anos atrás estive a reler as Farpas dele e do Ramalho e o que lá consta passa-se no dia a dia. Isto para dizer que o tempo não passou por ele(s).

Zé Cardoso Pires, foi considerado por António Lobo Antunes como o rei do diálogo entre os escritores portugueses. Era um homem que levava uma tarde a rever uma página, se fosse preciso. E é sempre. Foi um grande escritor.

Nemésio, não sei se melhor poeta se melhor prosador. Ainda aqui há dias, António Lobo Antunes, numa crónica que escreveu para a Visão, dizia que Régio e Nemésio nasceram ambos em 1901 e, agora, depois de Régio ter sido grande até aos anos 60, caiu desde aí , enquanto Nemésio está aí sem uma ruga.

Nemésio foi um comunicador de eleição e levou para a literatura essa qualidade de relatar a vida. Os seus diálogos são impressionantes.

Portanto, isto para dizer que o trabalho do nosso Rogério é de primeira água e é justo reconhecê-lo.

E eu faço questão disso.
Deixo-vos um abraço.


João Brito Sousa.




OUTROS AUTORES

UM PASSEIO A CAVALO
Vitorino Nemésio

Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da Caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope:

― Slowly! Let go him alone...

Os cavalos meteram a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo.

― Ah, não posso mais... O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale...

― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar... prender e folgar... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro lado. That’s dangerous!...

Roberto Clark exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água.

― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Jóia, que apanhou aquele passo escangalhado da charrette...
― Quê? A égua de teu pai, o peru?... Half-bre ... Já lhe disse que tem de vendê-la.

― Ah! Se o tio conseguisse!...

― Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos.

Margarida sorriu; mas mostrou-se reservada, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. Para tirar o avô das escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo de escorregar nos limos. Mas teimava; metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava defronte.

Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem?...

― Velha, não; mas enfim... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera!...

― Viajar ou envelhecer?

― Talvez as duas coisas...

Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.
... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém.

O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.

IN Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, 1999

Colocado por Rogério Coelho

DO CORREIO ELECTRÓNICO

OS ARRIEIROS
Começo por agradecer ao amigo Victor de Jesus a informação que me enviou sobre o Xixo, conhecido por Chicharro.
Como escreveu em meados do Século XX muitas palavras da língua portuguesa se encontravam deturpadas nos conteúdos em parte devido ao isolamento rural numa época em que meios de transportes eram escassos, assim como os informativos, que levava a que fosse notada a forma de falar nas diversas localidades do Algarve a poucos quilometros de distancia, algumas apelidadas com nomes até bizarros ex: Loulé (Caceteiros); Faro (os carecas); Aldeia de Estoi (das bruxas); Olhão (dos melos) entre outros.

Foi o Chicharro que me trouxe há memória os Arrieiros (vendedores de Peixe), figuras típicas na época o equivalente à denominação em Lisboa de Varinas (Peixeiras) em que o destaque para a maioria das Pessoas do Algarve era a liberdade de falar soltando os Palavrões em Público, já que na nossa região nessa época não era exibido grande parte desse vocabulário.
Na generalidade os Arrieiros se deslocavam em suas bicicletas a distribuir os Carapaus, Sardinhas etc. depois foram evoluindo até ás peixarias ambulantes da atualidade.

Ao Carapau era dado o nome de Charro nas suas diversas variedades: Charro lírio; charro negrão; charrinho de gato; e os maiores charro do Alto que mais tarde vim a entender ser o chicharro, até existia a denominação de Carapau de corrida para adjetivação peculiar de alguns indivíduos.
Ao contrário dos outros os Charro do Alto eram vendidos ao Par e na época tinha grande consumo sendo utilizado também na forma de escalado (aberto pelas costas e salgado) era depois colocado a secar e ai tinham uma imitação do Bacalhau.

Os arrieiros nas suas limitações de transporte pouca variedade ofereciam aos clientes e raramente utilizavam balança.
No carapau e sardinha a contagem era pelas mãos que tiravam de cada vez 5 peixes o que perfazia cinco mãos um quarteirão, dez mãos meio cento e 20 mãos o cento. Não existindo outras condições de conservação além do sal, as compras eram para o consumo diário de acordo com os agregados familiares se situavam na generalidade em dúzia ou quarteirão.

Nunca Iria imaginar que o Chicharro fosse conhecido também como nome de uma Planta leguminosa, aqui no Brasil o vejo comprarem em latas de conserva na forma ralada em que os consumidores imaginam que seja uma variedade de Atum que paralelamente é vendido na mesma forma.
Mas vá lá explicar as diferenças para muitos que a sardinha só conhecem as de lata, é tempo perdido!

Saudações Costeletas
António Encarnação