sábado, 20 de novembro de 2010

Solidão

De Manuel Inocêncio da Costa


Já na cidade a manhã aclarecia,
Sobre o papelão o pobre dormia,
Debaixo da arcada em noite tão fria,
O estar ali explicar não sabia.

Por toda a parte imensa solidão,
Gente desgarrada, desenraizada,
Tantos vivendo num mundo cão,
Porquê tanta gente malfadada?

Homens, mulheres, tanta gente só;
Doentes, velhos, endividados até,
Tudo como que reduzido a pó,
Pior - perderam a esperança e a fé!

Gente sem casa, sem dinheiro,
Mesmo se com família - desamparada! " .
A quem tudo falta por inteiro,
Como se fora tralha abandonada!

E Senhor, até as crianças também,
Sem apoios, sem educação e sem futuro,
Porquê dos responsáveis tanto desdém,
Tanta incúria? Não entendo, juro!

ESCRITORES ILUSTRES



Um pequeno apontamento biográfico para os que não
conhecem esta escritora




Sophia de Mello Breyner Andresen



Nasceu no Porto, em 1919, e aí passou a sua infância. Posteriormente, fixou-se em Lisboa. Publicou o seu primeiro livro em 1944, intitulado Poesia. Colaborou em importantes revistas literárias do século XX, como Cadernos de Poesia (1940-42), Távola Redonda (1951-53), Árvore (1950-54).

Em 1964, recebeu o «Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores», pela publicação de Livro Sexto (1962). Em 1977, obteve o «Prémio Teixeira de Pascoaes» com O Nome das Coisas. Em 1994, a Associação Portuguesa de Escritores concedeu-lhe o «Prémio Vida Literária». Mais recentemente, pelo conjunto da sua obra, foi distinguida com o «Prémio Camões» (1999).

Para além da sua obra poética e de vários livros de contos, escreveu ainda ensaios e duas peças de teatro. Traduziu também textos de Eurípedes, Dante, Shakespeare e Claudel.



Algumas Obras:


Poesia:
Poesia (1944)
Mar Novo (1958)
Dia do Mar (1974)
O Nome das Coisas (1977)
Musa (1994)
O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997)


Ficção:
Contos Exemplares (1962)
Histórias da Terra e do Mar (1984)

Contos para crianças :
O Rapaz de Bronze (1956)
A Menina do Mar (1958)
O Cavaleiro da Dinamarca (1964)
A Árvore (1987)

Colocado por Rogério Coelho

OUTROS AUTORES

RETRATO DE MÓNICA

Sophia de Mello Breyner Andresen

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.


IN Sophia de Mello Breyner Andresen
Contos Exemplares
1996 .

Colocado por Rogério Coelho