terça-feira, 23 de novembro de 2010

O REMEXIDO, RETIRADO DE
 a Brasileira de Prazins



PERSEGUINDO OS AFEIÇOADOS
 À REVOLUÇÃO DO PORTO



Em 1836 apareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, em São Bartolomeu de Messines. Os dois ex-sargentos alvoroçaramse com a notícia e resolveram apresentar-se ao formidável candilho. Veríssimo pediu à tia uma quantia mais avultada para pagar as últimas despesas do sacerdócio. A velha mandou-lhe o preço de uma vinha vendida e a sua bênção. Os aventureiros partiram para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de capitães. Veríssimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu heróico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia Águeda, e lhe dissesse que ele não podia largar a espada vencida enquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general Sousa Reis estava destinado a repor o Sr. D. Miguel I no trono, ou ser o último a morrer em sua defesa; que ele e um seu amigo e camarada tinham saído de Braga juramentados a morder o pó onde caísse o seu general. Que eram já comandantes de companhias, e tinham duas carreiras abertas -- uma que levava à glória, outra à sepultura -- que também era uma glória morrer pela pátria.



José Joaquim, o Remexido, era um bem figurado homem de trinta e oito anos. Nascera em Estômbar, estudara para clérigo no seminário de Faro, e distinguira-se em perspicácia e subtileza na percepção das teologias. O amor inutilizou-lhe o talento aplicado a um pacífico e humaníssimo destino. Viu uma esbelta moça de São Bartolomeu de Messines quando aí foi pregar um sermão, sendo minorista. As serenas visões do levita deslumbrou-lhas a formosa algarvia. Não hesitou entre o amor da humanidade e o culto egoísta da família. Casou, e de homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas searas, e redobrou de esforços à proporção que os filhos lhe multiplicavam o amor e os cuidados.



Insensivelmente compenetrou-se da paixão política. Nesta província, onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o domínio francês, a liberdade proclamada em 1820 abriu um abismo entre duas facções que por espaço de dezoito anos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más ideias, e manifestou-se em 1823 um ardente sectário das más, perseguindo os afeiçoados à revolução do Porto. Em 1826 emigrou para Espanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do rei absoluto. Daí em diante, receoso das retaliações, não teve mais uma hora de remansoso contentamento nem abriu mão da espada tão afoita quanto cruel.



Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionária às praias da Lagoa, em 24 de Junho de 1833, Sousa Reis com alguns cúmplices foragiu-se nos recôncavos do Penedo Grande, cujas veredas montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flor dos anos, inculpados idas paixões de seu pai, fiados na generosidade dos vencedores e na própria inocência. A vingança fez represálias na família do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa, depois do roubo e do incêndio da sua casa de Messines. O leão, como se ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna, precipitou-se dos penhascais à frente da sua alcateia, e atacou Estômbar com irresistível ímpeto. Estava ai a sua família sob a pressão das baionetas que a vigiavam como armadilha à queda do guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir à fúria de pai. Ele atirava-se às descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os inimigos que o viram nesse dia conservaram longo tempo a lembrança da sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem gentilíssimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve e estendeu até às fronteiras do Alentejo os seus domínios. Moveram-se contra ele muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da guarda nacional. Ele tinha adoecido de fadigas incomportáveis, e descansava com algumas centenas de homens num desfiladeiro da serra, chamado a Portela da Corte das Velhas. Ai o atacou uma coluna de caçadores 5. O Remexido, afinal, faltou-lhe a coragem de se fazer matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as baionetas. Deu-se à prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em Faro.

O regimento em que eram capitães o Veríssimo e o Nunes dispersou, e eles, claro é, fugiram à maneira dos muito discretos e bravos generais de que rezam os fastos militares



O pré dos guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatela ridícula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas algibeiras. É o que foi, e a história não pode dizer outra coisa. Queria talvez o major de Vila Verde, o denunciante de Braga, que eles andassem à carta das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os quatro vinténs diários e o vintém do munício!

Veríssimo foi para Alvações e Nunes para São Gens.



O Norberto morreu por esse tempo de uma congestão cerebral; alguém diz que o esganaram na cama dois malhados de Lobrigos contra os quais ele tinha jurado em 28. D. Águeda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava empenhada; foi à praça; sobejaram uns novecentos mil-réis e a casa com as armas, pagas as dívidas. O Nunes dizia-lhe da Póvoa que andava por lá miserável, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem tinha que vestir. O Veríssimo chamou-o para Alvações com generosidade. Vestiu-o, e dava-lhe meios para ele poder estudar em Vila Real, com advogados miguelistas, que o estimavam muito.



A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do Sr. D. Miguel das iluminações, que se parecia muito com o sobrinho.

No Inverno de 1840, D. Águeda morreu de uma indigestão de castanhas, complicada com enterite crónica e saudades da realeza. Deixou ao sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do Sr. D. Miguel às freiras de Santa Clara de Vila Real e mais dez moedas de ouro com a condição de lhe acenderem quatro velas de cera no dia dos anos de Sua Majestade.



Veríssimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo capitão Veríssimo. Deitou cavalo e mochila; jogou rijo dois anos na Feira de Santo António, em Vila Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já solicitava causas na Póvoa, repartia com ele dos seus proventos muito escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacável, e as partes fugiam dele.



O Veríssimo saiu de Alvações, onde não possuía palmo de terra; e, como tinha boa forma de letra, ofereceu-se para amanuense a um tabelião de Alijó. Ganhava três tostões por dia e jantar. Como era boa figura, a mulher do tabelião, uma trigueira de má casta, entrou a compará-lo com o marido, que tinha os dentes muito lurados e os olhos tortos. Mas o tabelião viu as coisas pelo direito, e pôs o amanuense na rua, e a mulher em lençóis de vinho, dizia-se. Veríssimo conhecia o capitão-mor de Murça, o Campos, uni hebreu realista, muito abastado. Ofereceu-se-me para escudeiro e foi aceite com bom ordenado. O capitão-mor era viúvo; mas tinha uma governanta fresca, de uma fome de pecado irritada pela indiferença judaica do amo em matéria de religião. O Veríssimo tinha a fatalidade femeeira do seu Sósia, do Sr. D. Miguel. O capitão-mor, com o seu fino olho de raça, lobrigou as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e impô-lo. Voltou ao Douro, e procurou o amparo de um realista poderoso, o António de Melo, de Gouvinhas, o pai do Sr. Lopo Vaz, um grande ministro liberal cheio de embriões de coisas, O fidalgo de Gouvinhas nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorizava pouco; o fidalgo admitia-o às suas palestras íntimas de política; mas um sobrinho do Melo, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o Malagueta, ganhou-lhe ódio, por ciúmes de uma tecedeira chibante, uma raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libânia de Covas. Travaram-se de razões. O Malagueta correu sobre ele com um punhal. Veríssimo acobardou-se na sua posição dependente e despediu-se.



A Libânia tinha cordões e umas moedas ganhas com o pudor diluído no suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João Camelo abriu uma escola de primeiras letras em Miragaia. Ao cabo do primeiro mês, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado, não podia com aquela bestialidade da instrução primária. A Libânia queixou-se um dia de dor de dentes. Foi uma inspiração. O Veríssimo resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, à Rua de Santo António, um bom homem. Andava neste tirocínio, quando encontrou no Tívoli, defronte da Biblioteca, o Nunes. A Libânia gostava muito de resvalar pela montanha russa, dava umas risadas argentinas, batia as palmas e queria montar os cavalos de pau que giravam no jogo da argolinha.



Quando se encontraram, o Torcato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha morrido, deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dois filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brasil, trabalhar em mangas de camisa, se fosse necessário. O Veríssimo respondeu-lhe que o único favor que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe as suas misérias mais íntimas; que aquela boa rapariga tinha gasto com ele quinze moedas e vendera o seu ouro; mas, tão generosa, tão honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava resolvido a ir estabelecer-se corno dentista na província, logo que pudesse comprar o estojo, que custava 12$000 réis, e não os tinha.



-- Se os não tens -- disse o Torcato -- minha mulher tem um cordão que pesa três moedas; para mim não lho pedia; mas para ti vou buscá-lo amanhã. -- E acrescentou, de excelente humor: -- Deus permita que na terra onde te estabeleceres sejam tantas as dores de dentes que não tenhas mãos nem queixos a medir.



Saíram alegres do Tívoli. Sentiam-se bem aquelas duas organizações esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam deveras, dois náufragos a quererem chegar um ao outro a mesma tábua de salvação. É nestes esgotos sociais que ainda, uma vez por outra, se encontram Pílades e Orestes.



O Veríssimo morava atrás da Sé, na Rua da Lada, uma casa de um andar, muito empenada, com o peitoril de ferro de uma única janela desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra corno a boca de um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cozida com cebolas, sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da companhia de tostão à Rua Chã, e enfiou no braço uma rosca de Valongo, que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões de ouro, que frigia peixe à porta e dava arrotos.



Cearam numa estúrdia de rapazes, como em Braga, nove anos antes, na tasca do Catrâmbias, na Rua do Alcaide. A Libânia de Covas muito larachenta -- que levasse o Diabo paixões, e mais quem com elas medrava; que, em se acabando o dinheiro, faziase cruzes na boca; mas que deixar o seu Veríssimo, não o deixava nem à quinta facada.



-- Nós devíamos ir todos para o Brasil -- lembrou o Torcato, que tinha meditado num recolhimento extraordinário.

-- E chelpa? -- perguntou a Libânia.

-- Se tu quiseres, Veríssimo, dentro de um mês temos um conto de réis.

-- Boa!... --disse o outro.--Bem se vê que as duas garrafas deram o que podiam dar -- uma fantasia de um conto de réis. Por dois tostões é barato.

-- Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não estou bêbedo, palavra de honra!



Libânia pôs a face entre ais mãos e os cotovelos na toalha suja de vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do Nunes. O Veríssimo atirou com as pernas para cima da banca, acendeu um charuto de dez-réis e disse que falasse à vontade.

-- Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?

-- Começas bem. Temos asneira.

-- Mau! Não me fales à mão.

-- Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça aclamar rei, e, para evitar efusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria II os meus direitos à coroa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.

-- Adeus minha vida! -- retrucou o Nunes impaciente. -- Amanhã conversaremos.

-- Deixa falar o homem! -- interveio a Libânia. -- Ora diga lá, é sê Nunes.



O Torcato expôs a sua teoria do conto de réis, desfez atritos, removeu dificuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto Minho, os dois. Libânia iria para Ramalde trabalhar nos teares da Grainha, que lhe dava comida, cama e doze vinténs por dia. Venderiam a um adeleiro da Rua Chã os trastes para o Veríssimo se enroupar de pano piloto, quinzena e calças com alguma decência, roupa branca, reforma das botas cambadas, chapéu de feltro e um paletó de agasalho.



Na quinta -feira gorda, a Libânia, com exemplar coragem, foi para Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendê-las ao Douro, tinha visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no Porto:



-- Olhe, moça, quando quiser ganhar a vida honradamente, lá estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençóis lavados na cama.

O Nunes e o Veríssimo foram juntos até perto de Braga. Aí, o de Calvos seguiu para casa, e o outro no sábado gordo partiu para a Póvoa de Lanhoso.



Retirado da obra de CAMILO CASTELO BRANCO, a Brasileira de Prazins,.por

João Brito Sousa

REMEXIDO


A primeira vez que ouvi falar do REMEXIDO foi por volta dos meus 12 anos, num dia de Inverno em que o mau tempo não deixava os homens ir para a faina marítima. Existia vários contadores de Histórias e um dos mais eruditos foi meu Tio Avô (Irmão do meu avô) no seu moinho na Praia dos Estudantes de nome Manuel Lázaro.

Depois de falarem do filme do José do Telhado que há anos vinha sendo exibido nos cinemas onde baralhavam com um pseudo filme rodado no Algarve em que tinha participado o Miguel Cego da Alcaria Cova o que nunca confirmei, entrou na conversa o Remexido, assim como as guerrilhas para expulsão dos Franceses na últimas das Invasões.

Era um entretenimento numa época em que não existia TV. Nem net , o Rádio poucos tinham e a maior parte das notícias vinha nos Jornais em que conheci várias famílias que não perdiam o Século que saía na Sexta-Feira e chegava á cidade no comboio rápido da tarde (ideais republicanos).
As Histórias no meio até essa época eram transmitidas oralmente de Pais para filhos , muito dos acontecimentos se misturavam como aconteceu com o caso do Remexido que nada tem a ver com as guerrilhas contra os Franceses e sim pela causa absolutista do rei D. Miguel, nem pertenceu ao bando do Zé do telhado.

Século dezanove em que proliferou as Revoluções em Portugal , só me recordo da matéria escolar fazer destaque á Maria da Fonte, enquanto nomes como João Brandão e Zé do Telhado , só mais tarde é que tomei conhecimento e nenhum deles era do Algarve e temos assim:
um Herói Algarvio, Herói Português!

Camilo Castelo Branco captou-o como personagem, que em 1836 dirigiu uma forte guerrilha em S. Bartolomeu de Messines, mas prolongou-se por todo o Algarve e Alentejo, embora o Sotavento Algarvio tenha sido mais poupado, com excepção do Azinhal.
Pensa-se, que por ser uma zona mais pobre de recursos alimentares e de posses dos habitantes da serra Monte Figo, mais aberta, sem arvoredo e de fácil acesso à linha bem protegida por tropa de Castro Marim, Tavira, Faro e do Batalhão de Voluntários de Olhão. Também poderia não actuar por esta paragens, por haver um batalhão de voluntários realistas em Tavira, que foram favoráveis, quando o governador do Algarve, era Sebastião Martins Mestre, ao serviço de D.Miguel.
Seu nome José Joaquim de Souza Reis, foi uma personalidade natural do Algarve, que granjeou certo prestígio na área das milícias populares e nasceu por volta do início do século XIX em Estombar, filho de lavradores abastados que faleceram ambos com poucos meses de intervalo, quando ele tinha apenas 6 anos de idade. O rapaz foi, então, entregue aos cuidados do seu tio José Joaquim de Souza, prior de Alcantarilha, que o destinou à vida sacerdotal, colocando-o no seminário de Faro aos 14 anos e recomendou – o ao bispo do Algarve, que era então o insigne D. Francisco Gomes de Avelar.

Casou-se em S. Bartolomeu de Messines. Deve-se, aliás, ao seu casamento , o nome por que ficou conhecido, já que se rebelou (remexeu) contra o seu tutor, que lhe proibia o casamento. Era um homem de posses, capitão de ordenanças, além de exercer a função de recebedor do concelho. Servindo D. Miguel, derrotou, em conjunto com o general Tomás Cabreira, o famoso Sá da Bandeira, na batalha de Sant' Ana. Estava-se na época da guerra civil, entre liberais e miguelistas.
Quando o primeiro duque da Terceira tomou conta do Algarve, o Remechido escondeu-se na serra algarvia, onde, recorrendo a uma táctica de guerrilha e apoiado por serranos, venceu sistematicamente as tropas governamentais. Diversos crimes foram cometidos em seu nome e rapidamente se tornou uma lenda de temor que se espalhou até ao Alentejo. Contudo, estudos recentes parecem ilibá-lo de tais crimes e acções ignominiosas.
De facto, queimaram-lhe a casa, açoitaram-lhe publicamente a mulher por não revelar onde ele se encontrava escondido e, por fim, mataram-lhe um filho de 14 anos.

Revoltado contra tal crueldade,vingou-se como podia e jamais se entregou, mantendo a sua acção de guerrilha mesmo depois da Convenção de Evoramonte.
Procurava castigar os que os perseguiam, mas perdoava aos soldados que lhe caíam nas mãos, porque desempenhavam um serviço que eram obrigados a fazer.
Por fim, foi capturado, levado a Conselho de Guerra e fuzilado em Faro. Julgado por um Conselho pouco simpatizante da "causa miguelista", e mesmo tendo-lhe a rainha D. Maria II concedido o perdão, tal ordem não foi cumprida e fuzilaram-no por interesses políticos e pessoais.

O Remechido (ou Remexido) é talvez a última personagem romântica do Algarve, um guerrilheiro contra-revolucionário que viveu e morreu pela causa absolutista e anti-liberal. Um exemplo de sacrifício e perseverança que deve servir de exemplo aos jovens revolucionários inconformistas que escolheram a via da dissidência para combater o actual estado de decadência em que está mergulhado o nosso país.

Com apoio de pesquisas na net.

Saudações Costeletas
António Encarnação




OUTROS AUTORES

A Choca

Trindade Coelho

Ao Senhor Emídio Navarro

Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.

Eles mesmos tinha estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...

Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.

Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...

Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.

Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros, ela mesma se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda,– adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...

Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!

Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...

De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.

Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!

...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, – e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando..

IN Trindade Coelho, Os Meus Amores, 1891

oooOooo

O FOGO DE SANTELMO
E A TROMBA MARÍTIMA

Luis Vaz de Camões

A obra épica de Os Lusíadas, escrita por Luís de Camões e publicada em 1572, exalta o povo português pela sua força e coragem de vencer grandes obstáculos ao longo da sua História. Nos dez Cantos, o poeta narra várias proezas, destacando a viagem marítima à Índia por Vasco da Gama realizada no final do século XV.

Vasco da Gama conta ao Rei de Melinde os fenómenos da natureza que os navegadores viram durante a viagem. A descrição no Canto V - estâncias 18-19-20 - mostra como os segredos da natureza eram vividos de uma forma intensa pelos navegadores. Pela primeira vez, sabiam que não estavam a imaginar aquilo que realmente viam.
________________________________________
(...)
18 «Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.
19 «Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e sutil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.
20 «Ia-se pouco e pouco acrecentando
E mais que um largo masto se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se co as ondas ondeando;
Em cima dele ua nuvem se espessava, [falta o ~ no u de ua]
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co cargo grande d' água em si tomada.
(...)
IN Os Luziadas - Luis de Camões
1572

Colocados por Rogério Coelho