domingo, 23 de abril de 2017

REVIVENDO


Um texto da nossa Colaboradora
Escritora Lina Vedes

AMORES DE LICEU
Agosto de 1952... manhã extremamente quente!
Imensa gente, adultos e crianças, no hall de entrada do Liceu de Faro esperando vaga para terem acesso à secretaria.
São os novos alunos, os caloiros que vão encetar o seu percurso liceal.
Tinham feito exame de admissão, procediam agora à matrícula.
Encarregados de educação vaidosos, cheios de esperança, acreditavam que a vida dos filhos seria risonha. Era um passo para o futuro, era a ambi­ção de uma vida melhor!
Alguém sai da secretaria dando a vez a outros e informa:
- O chefe, o senhor Lino, diz que este ano o número de matriculas femi­ninas já excedeu, em muito, as do ano passado. Cada vez mais mulheres querem estudar!
Na secretaria todos transpiram - os que aguardam o atendimento e os funcionários, no lado de lá do balcão, na azáfama do trabalho.
A um canto, um rapazito franzino, envergonhado, espera ser atendido mas os funcionários passam por ele e não o vêem...
De novo a porta de acesso à secretaria abre dando passagem a uma nova aluna acompanhada pelo pai e pela mãe. Chegam junto do balcão e pouco depois são atendidos.
O rapazito olha a menina, de soslaio, acha-a maravilhosa! Continua a olhar, com o rabo do olho a observá-la, concluindo que os padrões de vida são bem diferentes dos seus...
Instintivamente ela repara nele e os olhares cruzam-se. Ele, rapidamente desvia o olhar mas ela encara-o persistente, fixa-o bem numa análise profunda.
Pai - diz ela - dá-me a caneta de tinta permanente. Este menino precisa de ajuda.
Pouco depois, com tudo preenchido o rapazito agradece.
- Sérgio, tens de levar à tua casa, tudo isto, para o teu pai assinar. Amanhã voltas e entregas a este senhor da secretaria que é meu amigo. O teu pai tem que declarar quanto ganha para poderes usufruir de isenção de propi­nas. Desejo-te felicidades.
Margarida e ele olham-se de novo, com amizade, um olhar cheio de bri­lho, ternura e entusiasmo.                       Ela volta a vê-lo, dias depois, na sessão solene da abertura das aulas, passou entre muitos!
O episódio acaba por cair no esquecimento!
Decorrem dois anos. Nova sessão solene de abertura de um novo ano lectivo com os usuais discursos, conselhos e regras comportamentais, elogios aos meninos bem comportados, aos bons desportistas e aos que melhores notas alcançaram.
- Todos os alunos deviam imitar - diz o senhor reitor, Dr. Ascenso - os que se salientam pelas boas notas e pelo comportamento exemplar. Chamo o aluno Sérgio Gordinho, o melhor aluno do ciclo. Venha buscar o seu prémio.
Ao ouvir chamar por ele o coração de Margarida dispara ... Sérgio, é o meu amigo! Tinha-o esquecido!
Avança e vê um rapaz espigado, com bom aspecto, ar decidido a revelar saber, na perfeição, qual o caminho que escolheu para seguir na vida.
Olham-se, profundamente, um olhar físico, menos ingénuo mas muito analítico.
No dia a dia desse ano encontram-se, casualmente.
     As suas vidas familiares não os aproximam. Vivem longe um do outro em espaço e em atitude. Ele no Alto Rodes e ela na zona de S. Luís.
Margarida ocupa os tempos livres, levada pelos pais, no clube Farense, na Gardy, no cinema, na igreja ou a visitar amigas da mãe na hora do chá.
Sérgio brinca na rua aos polícias e ladrões, joga futebol com bolas de trapos e percorre a carreira de tiro a "catar" chumbo deixado pelos solda­dos durante os treinos, para vender no ferro velho. Apanha tâmaras das palmeiras enormes existentes na zona de habitação, também para venda. Dá explicações a colegas mais novos aplicando essas pequenas verbas na compra de roupa ou sapatos para usar durante as aulas.
Vidas separadas!
O liceu embora misto não permitia que rapazes e raparigas se encontras­sem. As regras estabelecidas impunham a separação, com punição grave, para quem não obedecesse.
Quando frequentavam o ano e mais tarde o 5º, em dias de chuva, o hall do liceu entupia de gente, na hora da saída. Essa oportunidade de convívio não era perdida. Rapazes e raparigas, lado a lado, trocando olha­res, sorrisos, separados mas juntos... sem contacto verbal mas sentindo o prazer da presença.
     Sérgio e Margarida, aos poucos, começaram a provocar encontros. Todos os dias esperavam um pelo outro. Ao toque da campainha pas­sam a subir a escadaria do liceu lado a lado, degrau a degrau. Não falam, olham-se, sentem prazer por estarem juntos. Entram no hall por portas dife­rentes. Ela segue em frente e ele vira à esquerda pelo corredor da reitoria, o dos rapazes.
Em plena adolescência com uma moral social rigorosa, que nega o ins­tinto sexual tornando-o pecaminoso, nada mais podiam fazer.
Olhavam-se inquietos na ânsia da conquista, sentindo ondas de volúpia a percorrer-lhes os corpos...
Durante os exames do ano, mais libertos das leis impostas, convivem, conversam, são mais íntimos. Muitas vezes, permanecem de mão dada sentindo os corpos electrificados... Outras, beijos dados de raspão, enlou­quece-os. Acontece um beijo marcante, profundo, corpos enroscados num prolongamento de prazer!...
Ele dispensa da oral, ela reprova na secção de Ciências.
Margarida é transferida para o colégio do Alto e a separação acontece de novo.
Quando ela regressa ao Liceu algo se havia quebrado. Tinham mais liberdade, mais possibilidade de se encontrarem mas o encanto tinha esmorecido. O olhar, chave dos sentimentos, mensageiro do desejo, reve­lava agora muita insegurança e muita incerteza.
      Em 1960 Sérgio ingressa na Academia Militar em regime de internato.
      Na hora da despedida, um abraço forte confirma que, apesar de tudo, a afinidade é um sentimento que resiste ao tempo é um sentimento subtil, delicado e penetrante... Com aquele abraço retomam a relação, no exacto ponto em que fora interrompida.
A caminho de Lisboa, sentado no banco duro do comboio, Sérgio revê todo o passado:
- a mãe muito doente tratando da casa e dele e o pai chegando quase sempre bêbado;
- o nascimento da irmã e pouco depois a morte da mãe;
- a ajuda dada pelas vizinhas e ele a ter de assumir a responsabilidade
da casa;
- a força dada pela professora da escola primária, junto do pai, a levá-lo a estudar no liceu;
- a colaboração do Sr. Reitor permitindo-lhe almoçar, gratuitamente, na cantina Liceal;
- o pai reencontrando o caminho certo da vida, assumindo o seu papel;
- o que batalhou para concluir o ano com distinção, as horas de estudo
e o trabalho das explicações;
- o amor de Margarida, a nostalgia, o medo e a incerteza do futuro.
O trepidar do comboio embalava-o... como posso eu amá-la?! O nosso amor é impossível! Para bem dela o melhor é esquecer!
Nunca tinha ido a Lisboa mas sabia o que fazer. Descer no Barreiro, atra-
vessar o Tejo de barco e no cais procurar um táxi.
A guerra do Ultramar inicia em 1961. Os anos decorreram...
Sérgio é destacado para a Guiné, para Angola, as comissões de serviço sucedem-se.
Pouco vem a Faro.
A irmã trabalha numa agência bancária e o pai, já reformado, está em casa distraindo-se no clube Vitória existente no Alto Rodes.
A saudade obriga-o a vir à sua terra Natal, apaziguar a parte dolorosa da sua vida.
Vai à Gardy e, de imediato, vê Margarida. Bonita, elegante, a mesma cara e a mesma expressão de doçura! Está sentada a uma mesa. Não resiste e aproxima-se.
Ela levanta a cabeça e olha-o, enfrenta-o incrédula. O sonho não con­cretizado espelha-se no olhar de ambos. Uma lágrima rola pela face de Margarida...
Repentinamente, chega alguém, que se interpõe entre os dois rou­bando-lhes o passado!
     - Mãe, esta tarde quero ir a casa da Manuela e à noite vou com ela ao cinema. 

Lina Vedes
12 de Dezembro de 2012

Liceu de Faro em Stº. António do Alto (1950)
A Capela de Stº. António visível, atrás, do lado esquerdo.