Uma crónica especial da nossa colaboradora Professora
LINA VEDES
Ser farense
Há
7o anos os farenses, de uma maneira geral, viviam tranquilos e com poucas
ambições, usufruindo relativamente satisfeitos daquilo que a vida lhes
proporcionava.
A
guerra havia acabado há pouco, as carências económicas eram muitas e o lema de vida
era a poupança. O racionamento dos
principais bens de consumo implicava a necessidade de inventar como sobreviver com pouco.
Todos
se conheciam, sabiam da vida uns dos outros, criticavam com facilidade a
conduta deste ou daquele e procuravam aliviar os dissabores com a ajuda
e o convívio de vizinhos e amigos.
Nas noites
quentes de Verão, sentados à porta das
casas partilhando petiscos e conversas do “diz que disse”, criticavam e não perdoavam os pecadores que eram apontados
como traidores, pessoas de mau porte, banidos
de uma pretensiosa sociedade. Era uma disputa permanente entre o bem e o mal, entre o amar e o odiar!
Toda a comunidade, utilizando um
padrão comum, buscava alento e
diversão nas diferentes festividades populares vivendo-as intensamente, dentro
ou fora de casa.
Pelo Natal em muitos lares montavam o presépio
utilizando musgo e areias de
diversas cores, ao dispor na carreira de tiro, cortiças, casas feitas de papel,
lagos e rios de pratas de chocolate, sem gastos, utilizando toda aimaginação possível.
À ceia não faltavam filhoses, fatias douradas arroz doce e,
por vezes um copito de vinho do
Porto ou um licor caseiro.
Para a criançada o momento alto era o sapatinho
à chaminé e a convicção de que era o Menino Jesus que colocava os presentes - umas cuecas, umas meias, uma
sombrinha de chocolate... rebuçados!
Os
comerciantes, principalmente os da R. Santo António, armavam o presépio nas
montras das lojas.
Algumas
crianças acreditavam que no último dia
do ano se travava no céu, uma luta entre o ano velho e o novo. O ano novo vencia
e era preciso deitar fora, para a rua, os ”trastes” que existiam em
casa.
No primeiro dia de janeiro desciam à
cidade grupos de charolas. Vinham dos arredores de Faro com o seu folclore
tradicional.
Em novembro os farenses
festejavam o dia de S. Martinho. Grupos de crianças nos diversos bairros da
cidade, trabalhando em conjunto, transformavam
caixotes de madeira em andores e, com os parcos recursos que tinham,
embelezavam-nos com pinturas e colagens.
No dia do santo os mais velhos
transportavam o mais pequenito do grupo aos ombros, dentro do andor. la de
bigode e patilhas, pintado com uma rolha de cortiça tisnada e iluminado com
velas acesas. Percorriam as ruas da cidade cantando para receberem umas castanhas,
uns rebuçados ou moedas de cinco tostões:
-
S. Martinho Lapa vamos ao larapa
S.
Martinho vinho vamos ao copinho!
Ti
Manel ceguinho foi ao camarão
Com
uma bota rota, outra sem tacão!
No
final da noite dividiam o produto das ofertas, um verdadeiro tesouro que os
deixava radiantes!
Fora dos limites da cidade e perto da capela a Santo Antônio do Alto, em 1948, O Liceu Nacional de Faro abre portas e a avenida rasgada até ele rompe com a vida rotineira dos farenses.
Fora dos limites da cidade e perto da capela a Santo Antônio do Alto, em 1948, O Liceu Nacional de Faro abre portas e a avenida rasgada até ele rompe com a vida rotineira dos farenses.
O ensino liceal vem proporcionar uma onda de juventude
vinda de todo o Algarve e até do Alentejo. O farense aprende a olhar para o
futuro com confiança perdendo a vida cinzenta que levava.
Esta agitação juvenil e explosiva
mexe, de maneira positiva, com o desenvolvimento cultural e comercial. Casas
alugadas a estudantes vêm ajudar orçamentos familiares e ruas inundadas de
gente animam os mais cépticos.
O ano lectivo iniciava-se em Outubro com uma sessão solene
no ginásio do Liceu na presença de todas as entidades escolares, pessoas
destacadas da sociedade civil, do senhor bispo do Algarve, alunos e
encarregados de educação. Essa abertura marcava, incisivamente, o cumprimento
de horários e o respeito e obediência aos senhores professores e contínuos.
Eram definidos espaços diferentes a utilizar por rapazes e por raparigas,
condutas comportamentais e a exigência das alunas usarem bata branca e meias
até ao joelho.
O Liceu e a Escola comercial não só instruíam como educavam
dando continuidade ao rigor das leis sociais e religiosas. Tudo era pecado,
tudo parecia ou fazia mal. Rapazes e raparigas não tinham hipóteses de
contacto, viviam separados e espartilhados.
O tempo de Carnaval era uma bênção! O espírito carnavalesco
rompia receios, afastava tabus, permitindo que os farenses se entregassem à
diversão. Brincavam com “partidas” imaginativas: embrulhos com pedras deixados
na rua; carteiras presas com fio de pesca, colocadas na passagem das pessoas e,
puxadas lentamente, na altura em que alguém tentava agarrá-las; letreiros colocados
nas costas que poderiam dizer “VENDE-SE ESTE BURRO” . . . uma infinidade de situações!
- “No carnaval nada faz mal!”
Nos dias de mascarilhas a cidade saía à rua. A baixa de
Faro era o local de eleição. A rua de Santo António estoirava de gente. Pessoas
mascaradas de alto a baixo com voz de falsete desfilavam pelas principais
artérias a caminho dos clubes, onde orquestras tocavam, permanentemente,
animando os bailes. Um verdadeiro rodopio de gente disfarçada que desfilava e
gente que assistia à sua passagem. Aconteciam trocas de palavras entre umas e
outras que podiam ser divertidas, comprometedoras ou até agressivas.
O Carnaval acabava na terça-feira à meia-noite e a partir
desse momento a Igreja impunha recato, pondo final aos bailes e às brincadeiras.
Começava a Quaresma, tempo de meditação, tempo de remissão de pecados.
Neste
período eram os contratos de amêndoas celebrados entre amigos que animavam. Estes eram contraídos por
iniciativa de duas pessoas que o marcavam com os dedos mindinhos enganchados:
“- Contrato, contrato, contrato faremos, sábado de Aleluia o desmancharemos!”
“- Contrato, contrato, contrato faremos, sábado de Aleluia o desmancharemos!”
A partir daí e até
ao fim da Quaresma, sempre que se encontravam cada contraente tentava ser o
primeiro a ordenar:
“-Ajoelha e reza!”
No sábado de Aleluia, o grito era:
“-Ajoelha e oferece!
As amêndoas tinham de ser pagas no
Domingo de Páscoa!
Durante a Quaresma
o sentimento religioso do farense exultava-se pela vida de Jesus. Participavam
com fé e humildade em todas as procissões, confessavam-se, comungavam,
visitavam as Igrejas, respeitavam a abstinência e não comiam carne às
sextas-feiras. Era o temor a Deus elevado à potência máxima! No domingo de
Páscoa era costume estrear fatiota nova.
Pela feira de Outubro, a de Santa
Iria, também havia o hábito da roupa nova. Feira implicava agitação, novidade,
animação, convívio, distracção, alegria. . . Tudo isto acontecia durante as feiras do Carmo e a de Santa Iria no Largo
de S. Francisco com imensa gente vinda de fora e a possibilidade de comprar
artigos que só apareciam nesta altura, trazidos pelos feirantes.
Os farenses tinham o hábito, muito antigo, de sair para o campo no dia 1º de Maio, Famílias inteiras com cestas de comida juntavam-se a outras famílias para passarem o dia confraternizando saudavelmente. Normalmente era no Rio Seco.
Os farenses tinham o hábito, muito antigo, de sair para o campo no dia 1º de Maio, Famílias inteiras com cestas de comida juntavam-se a outras famílias para passarem o dia confraternizando saudavelmente. Normalmente era no Rio Seco.
Pela festa da
Ascensão de Jesus ao céu, quinta-feira, pela madrugada, o citadino ia ao campo colher
a espiga. A simbologia do ramo era intensa, composto por três espigas de trigo
para que não faltasse comida durante todo o ano, oliveira pela paz e luz,
videira para captar alegria, papoilas, mal- mequeres e alecrim para darem a
graça de poderem contar com dinheiro, saúde, amor e força para viver…
Acreditavam, os farenses, na mágica da espiga.
Mas...
O auge de todas as festividades acontecia pelos Santos Populares homenageados, por toda a
O auge de todas as festividades acontecia pelos Santos Populares homenageados, por toda a
comunidade, com entusiasmo e intensa alegria.
Misturando o
profano com o religioso acreditavam que António favorecia os casamentos, João
abençoava o amor, a sorte e a fortuna e Pedro protegia as viúvas.
Nas ruas não faltavam arraiais festivos com mastros, com
bandeiras e balões de papel colorido, manjericos, bailes, fogueiras, pequenos
fogos de artifício —” pedinhos de velha”, “b’cheninas”, “estalïnhos” e
bombinhas...
Sentados às portas das casas comendo e bebendo em franco
convívio, pela noite fora, conversavam, pulavam fogueiras, “tiravam as sortes”.
Moças casadoiras tendo como único objectivo de vida os
casamentos não dispensavam os jogos de adivinhação: três papelinhos bem enrolados
contendo três nomes masculinos, passados pelo alecrim da fogueira, tinham três
destinos diferentes — o fogo, atrás de uma porta e debaixo do travesseiro (o
eleito).
Outra
das “sortes” praticadas consistia no corte da parte florida da alcachofra na
esperança do renascimento da flor e com ele a confirmação do casamento
desejado.
Na
alameda João de Deus, durante muitos anos, aconteceram festas populares e
algumas incluíram concursos de “Marchas Populares” e “Vestidos de chita”.
No jardim de S. Pedro e na Praça D. Francisco Comes, perto
do coreto, na noite de S. João corajosos exibicionistas divertiam-se e
divertiam quem quisesse assistir ao espectáculo do “combate de carretilhas”.
Era perigosíssimo, ao menor descuido a carretilha podia explodir pois tratava-se
de uma espécie de fogo de artifício preso que rabeava pelo chão.
Perto do coreto o combate transformava-se numa competição
aguerrida. Os participantes não se intimidavam e podiam concorrer dois ou três
em simultãneo ou individualmente. A competição era dispendiosa, não possível às
bolsas pobres e a precisão era a “chave do sucesso”: agarrar firmemente a
carretilha, acendê-la nas brasas (colocadas num bidão ao dispor dos valentões),
fazê-la rodopiar por cima da cabeça e lançá-la no minuto certo, com arte,
pondo-a a dançar como que raivosa, esperneando, bufando faíscas até morrer
inerte nas pedras da calçada!
O carácter do farense genuíno formou-se nas vivências de todas estas efemérides. O acumular de experiências vividas criou um padrão - SER FARENSE!
O carácter do farense genuíno formou-se nas vivências de todas estas efemérides. O acumular de experiências vividas criou um padrão - SER FARENSE!
Lina Vedes
Março de 2016
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