quarta-feira, 12 de outubro de 2016

CRÓNICAS DUMA PROFESSORA APOSENTADA

As Crónicas da nossa Colaboradora e Escritora

Lina Vedes
    A  Estradinha Funda

Por volta de 1946 alguns farenses começaram a ouvir falar da “estradinha funda”. O auge do falatório estende-se pelos anos de 1950 e 60...
   A estradinha funda era terra de ninguém, estreita e comprida, compreendida entre dois muros altos que limitavam duas quintas - a do Alto e a do Balão.
   Situada atrás do Liceu de Faro e da capela de Santo António, mesmo durante o dia, olhar para ela arrepiava. Era comprida, estreita, nublada, entalada entre paredes caiadas, chão de terra batida repleto de pedregulhos que dificultavam o andamento ágil. As paredes, encardidas pelo tempo, expunham desenhos indecentes, palavras e palavrões, nomes próprios masculinos e femininos dentro de corações mal riscados, frases curtas e emporcalhadas, poemas, quadras soltas... Um manancial comunicativo, impróprio para os olhos de qualquer cidadão comum.
   Não tinha qualquer tipo de atracção, nem de beleza, nem histórico glorioso do passado farense.
   Os residentes em Faro, na altura do apogeu da descoberta, passaram a saber onde se situava a estradinha funda e o que lá se passava. A fama passou a ser maior do que o tamanho da dita.
   O conhecimento do local talvez tivesse começado por visitas ocasionais de pares de apaixonados, que escolheram o sítio para descarregar o seu intenso amor!
   O local não era bonito mas era discreto. Ninguém se lembraria de passar por aquela língua de areia escura e pedregosa. Era o sítio ideal para encontros ilegais e sigilosos.
   Teria sido descoberta por algum casal de amantes que passou palavra a outro e a outro... A procura do recanto amoroso aumentou e o nome “estradinha funda” apareceu do nada!
   Com o decorrer do tempo a fama subiu de tal maneira que os concorrentes ao sossego o tornaram tudo, menos discreto. Espalhavam-se ao longo da estradinha, não se olhavam quando se cruzavam e não se conheciam quando se encontravam em locais da vida social.
   Mas... Há sempre um mas...
   A sociedade daquela época, masculina em absoluto, atribuía à mulher um lugar secundário que elas, submissas, abraçavam. Segundo Freud era o “complexo de castração’ era a educação da época! O pudor dominava-lhes a vida!
   As leis formuladas pelos homens cortavam toda e qualquer exaltação.
   Usando a artimanha de verdadeiros caçadores, muitos homens, conseguiam alcançar “presas desprevenidas” não olhando a meios para atingir os fins.
   Esses tempos redutores empurraram mulheres para a “estradinha funda” e não só, conquistadas pelo macho, iludidas, acreditando no amor que eles diziam ser eterno. 
   A divulgação do que se passava, perto das traseiras da capela do Alto alastrou, dando origem ao aparecimento dos “mirones” aqueles que espreitam a vida alheia.
   A certa altura o número de “espreitas” era superior ao número de pares amorosos que, apanhados em flagrante, fugiam e, segundo consta, muitos restos visíveis de amor interrompido foram encontrados à luz do dia.
   Ao anoitecer uma romaria de mirones dirigia-se para a estradinha funda.
   Velhos já caquécticos, incapazes de amar no presente e sem o terem feito no passado, iam espreitar procurando excitação animalesca.
   Buscavam, igualmente, saber quais as pecadoras que se expunham a tal humilhação para poderem, à mesa do café ou ao balcão de uma tasca, relatar factos vistos, com acrescentos impróprios e indignos.
   Esses velhos e os seus ouvintes pouco aprenderam sobre a vida. Para eles já era tarde, para eles era impensável elevarem-se acima do estado animalesco, Já não conseguiriam dar carácter ou conteúdo humano às suas funções animais...
   Os adolescentes masculinos tornados mirones iam ao local por curiosidade. Inexperientes, pouco ou nada informados sobre sexo, receando o acto sexual, procuravam aprender como agir... Vendo a mulher como objecto de prazer!
   Para eles, ao fim de algum tempo, a curiosidade morreu e a estradinha funda fechou.
   As mentalidades enobreceram. Rapazes e raparigas passaram a encarar a vida com uma perspectiva diferente. A partilha aproximava os casais. A vida em comum modificou-se.
   Mas... Os anos continuaram a exercer a sua influência...
   De cambalhota em cambalhota chegámos a modificações radicais.
   Mulheres que passam a ser caçadoras, homens caçados ou ainda, a troca constante de posição consoante o interesse ocasional.
   Nesta confusão de valores muita gente voltou… e continua, a percorrer caminhos escuros, emparedados e empedrados, uns atrás dos outros, empurrando-se, pisando-se, tentando ultrapassagens ilegais...
   Para esses poderemos perguntar:
   - Onde está o céu azul do dia ou as estrelas brilhantes da noite?
   - Onde fica a linha do horizonte, o murmúrio das águas, o tresmalhar do vento entre a folhagem das árvores?
   - Onde se encontra o vizinho amigo, o irmão, o colega de escola ou de trabalho, o amor, a amizade, a mão amiga estendida ou o abraço fraterno?

Lina Vedes
30 de janeiro de 2o13
Foto da Estradinha Funda (de Lina Vedes)
Lembram-se?
NOTA: Cliquem sobre a foto para aumentar