O que se vivia na minha rua
Recordações
dos anos 30/40
Era “moce” e as recordações daquele tempo
abrem-se, não na minha imaginação, mas na minha memória. Parece que foi ontem.
Mas já lá vão oitenta e alguns mais.
Tentarei passar a “gravação
do filme” daquilo que a minha memória se lembra do quotidiano da minha rua,
naquele tempo.
Abramos um parêntesis para focar algo de diferente.
Rapazinho, que eu era, não tinha brinquedos com a
quantidade que hoje se vê. Muitos dos brinquedos imaginava-os. E, quando desejava
alguma coisa, lutava para alcançar esse objectivo. As crianças de hoje não têm imaginação, não lutam, nem se empenham, não
convivem, porque não vivem, como nós vivíamos livremente. A ocupação de hoje é
feita na frente de um televisor ou de outros aparelhos que a invenção
tecnológica lhes proporciona. Falta-lhes a liberdade, que nós tínhamos de
correr pelas ruas sem o perigo dos carros, dos assaltos ou… dos raptos. A nossa
televisão era de facto a rua. Mas vejamos em pormenor o quotidiano que referi.
A minha rua
Manhã cedo e batiam à porta. Era a “Ti Chica” com o
leite num cântaro de lata. Ou então, quando ela não podia, o rapaz a bater e a
gritar “Leititos”. E lá ia a mãe com a vasilha para comprar a quantidade, para
o café da manhã, de toda a família.
O carteiro batendo a todas as portas para entregar
pessoalmente a correspondência. O homem das “carca-nholas”(ostras) a dois tostões a dúzia. A mulher das bananas
e “alcagoitas”; por vezes passavam o
“menino Xico”, o “Cuco” o “Gaiana” o homem das rifas a apregoar “do menino pr’á menina, da menina pr’ó menino é testão”. Tudo
diferente daquilo que é hoje.
Mas continuemos, porque, estamos a ouvir uma sineta no
cimo da rua, era a carroça do lixo puxada pelas bestas, a cheirar que
tresandava, com os homens que recolhiam o lixo, dentro das alcofas, para
despejarem na carroça, com o acompanhamento de uma praga de moscas.
E, logo a seguir, vinham os aguadeiros com os cântaros
de barro, que enchiam no poço de S. Pedro, fazerem a distribuição.
A “Ti Maria”, e outras, com seus
produtos hortícolas, e que eram pesados naquela balança já ferrugenta e
desalinhada. Balança romana que devia valer hoje uma boa quantia de euros para
os coleccionadores daquelas relíquias.
E a
carroça ali ficava parada no meio da rua, com as mulheres à volta, e sem
paragem do trânsito. Não havia carros.
O homem do sal, numa pequena carroça, puxada pelo burro
e que gritava “Sal e azar”, que a polícia de vez em quando o levava preso e
que, depois de solto, voltava a vender o sal com o mesmo pregão.
Aproximava-se a hora do almoço, sentindo-se, por toda a
rua, aquele cheirinho de boa comida.
E logo depois, verificava-se uma calmaria, naquele
período de descanso sem burburinho.
Por vezes ouvia-se a gaita do caldeireiro ou do
amola-tesouras, aquele que remendava com solda os tachos de cobre e punha “gatos” nos de barro, este com aquele
barulho característico a amolar as tesouras e as facas.
À tardinha ouvia-se a correria louca dos ardinas com os
jornais nas suas sacolas. Jornais que tinham chegado no rápido de Lisboa. Era
uma “guerra” aberta entre o
Vieguinhas e o Pardal apregoando o “Século” o “Diário de Notícias” e
outros.
Por vezes observávamos desentendimentos entre as
mulheres, com puxões de cabelo, por causa dos maridos ou das amantes.
Mais “filmes”, da minha rua, poderíamos
contar no dia a dia da cidade, bastava um pouco mais de atenção.
Era assim o dia-a-dia da minha rua na cidade de Faro.
Faro - Anos 30
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