terça-feira, 1 de outubro de 2019

UM PESCADOR

GENTES DE TERRA EM MAR

Encontrei-o a amanhar as redes com que quase todos os dias põe o sustento na mesa. Fá-lo com a mestria dos anos. As suas mãos são duras, como o tempo que passa no mar. Apetece-me tocá-las e sentir-lhes as experiências, as dores, os medos, as vitórias, as partidas choradas e os regressos abraçados. Resisto.
Fico antes a ouvir-lhe as histórias que lhe saem da alma sem levantar os olhos do que faz. Observo-o. É meticuloso.
Contudo, não acredito que esteja a ver o que faz, pois fá-lo de cor. Parece-me reviver as palavras que lhe saem da boca. Algumas são duras e escondem dias difíceis. Outras são felizes, como a do dia em que o filho mais velho nasceu.
Sempre foi pescador. Não por vocação. Foi para o mar para fugir à guerra. Andou em bacalhoeiros nos mares agitados do norte. E que norte! Um norte pior que tudo o que conhecemos - frio, áspero, dorido,... mas em tudo melhor que a ideia de ir para a guerra.
Andei por lá muitos anos, disse-me nuns segundos de pausa em que levantou o rosto queimado do sol e do sal para me fitar. Perguntei-lhe se alguma vez tinha tido medo. Respondeu-me que sim, e que era a fé em Deus que lhe acalmava a ânsia embrulhada no estômago.
Voltou porque tudo aquilo começara a ser muito grande e demasiado longe. Era difícil estar longe da família. Eram meses fora de casa, menina. As noites não tinham fim e os dias custavam a passar. Comprou um barco e desde então vai para o mar com a certeza de que a ausência é curta e que regressa ao aconchego do lar e do amor da sua vida.

Margarida Vargues