segunda-feira, 25 de outubro de 2010


SONHANDO

O homem passa as páginas do livro com ligeireza, como se a leitura não fosse senão uma lembrança de algo já conhecido, versículos dos seus próprios familiares, anunciações e epifanias previstas.
Mais concentrado na comodidade do cadeirão, no calor do rescaldo e na forma exacta em que as coxas se moldam ao assento.
Também a luz é perfeita: projectando-se a partir do candeeiro de pé, envolve-o num círculo. O resto do quarto está na penumbra, o que faz ainda mais intimo o reconhecimento, a solidão ainda mais acolhedora.
Questiona-se sobre a possível duração da placidez como pelo inevitável fim da melodia que ouve com deleite. Quando acabar poderá faze-la tocar de novo?
O “cheiro” começa-se a aglomerar no lado da penumbra, como se competisse com o círculo de luz. O “cheiro” intensifica-se pouco a pouco, numa escala em que os graus aumentam com a passagem da música que já não ouve.
E o “cheiro” ganha forma.
Da penumbra do compartimento, com um sorriso aberto que mostra muito bem a brancura dos dentes, senta-se na poltrona em frente e olha, concentrada não nos olhos mas sim no homem inteiro, com o olhar que se sabe observada.
Ela está despida e ele olha para a sua carne, cinzenta na penumbra, e sabe que os seus mamilos não são rosados mas sim avermelhados.
O homem olha e cheira-a. Ela larga o seu “cheiro” e ele inspira-o recebendo a oferta dela.
O ritmo deste intercâmbio cresce como a febre, e tem um clímax e um final.
Quando ela fica satisfeita, volta a sorrir e a mostrar os belos dentes brancos.
A imagem desvanece-se, e o homem, tenso como um arame, sente como o livro cai no chão. Arqueja no cadeirão, sua e geme. E o suor que, a pouco e pouco, lhe devolve a memória. E acorda.
Procura, mas a imagem volatilizara-se e, no entanto o “cheiro” permanece no quarto. Põe-se de pé alucinado pelo sonho. Sai de casa e senta-se sobre a frescura da relva do jardim e cheira-se a si mesmo. E no cheiro do sonho reconhece agora o seu íntimo cheiro.

Alfredo Mingau

Meus caros amigos
Com a publicação deste texto, entendo que devo fazer um interregno na minha colaboração.
Não pretendo “açambarcar” o blog com as minhas criações.
É necessário que apareçam outros.
Inté
AM

2 comentários:

  1. Para tomar tal decisão,
    Se outra razão houvesse,
    Então sim, haveria razão,
    Mas açambarcar, não parece
    RC

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  2. Caro Alfredo Mingau:

    Ia hoje mesmo dar por terminada a "desgarrada" com que nos temos vindo a divertir nos Comentários à tua; Morte Lenta ( História de Ficção), publicada no dia 22/10.
    Agora ao tomar conhecimento da tua intenção de interromper a tua colaboração no blogue após o "Sonhando" de hoje, vejo-me na contingência de terminá-la, não com as Sete mas simplesmente com duas das quadras que compunham a minha resposta ao teu poema de 24/10/2010.
    III
    Se preferes a discrição,
    tenho então eu o dever
    de parar com a emoção
    que o diálogo estava a ter.

    VII
    Mas dou-te os meus parabéns
    pela tua galhardia,
    Pelas qualidades que tens,
    Que a gente tanto aprecia.

    Gde Abraço
    J.Elias Moreno

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