terça-feira, 19 de outubro de 2010


MARÉ VIVA

O barco desliza pela água com extrema suavidade.
Mais do que golpear a água, os remos pensam-na, saboreiam-na. E a água, mais do que tolerar, recebe o suave peso. De tanto pensar a água, de puro norte, o barco está desorientado.
Madeira e água desejam-se.
Há dois lábios de água para cada pedaço da pá de madeira e uma boca de água para cada remo. O céu do paladar dessa boca de água é feito de espuma tranquila e essa tranquilidade é o ensino que reparte o prazer, na forma de erecção deslizante.
O remador assiste a este espectáculo de suavidade com a boca seca e chama em seu auxílio a saliva. Apercebe-se que não governa os remos, que os imita; apercebe-se de que acaricia os punhos, em círculos que se encerram na palma das suas mãos.
Da mesma maneira a água pule a madeira, a madeira é o polimento da água e os olhos aquosos do remador que rema sem remar parecem pérolas nesta cena nacarada.
Durante um longo tempo, o remador não de atreve a abandonar este estado nem a persistir nele.
Agora a madeira está a ponto de incendiar a água e está a ponto de arder. O remador levanta o olhar e, do centro da Ria Formosa, o homem contempla os dois navios de guerra ancorados em frente, nas quatro águas.
Dos navios ouvem-se apitos e ordens e marinheiros a correrem dentro dos navios a Bicuda e a Azevia. Olha os dois vasos de guerra majestosos na sua frente.
O remador dispõe-se a seguir por entre os dois navios. As mãos agarran-se aos remos, que começam de novo a golpearem á água. Madeira e água repelem-se, chamando-se. Madeira e água deixam de se acariciar e tocam-se. Remando e conduzindo o barco até mais à frente. Pára de remar; arruma os remos dentro do barco e lança a ancora pela borda para dentro da água. O barco estaca. Começa a levantar-se a ondulação e nota-se a Água a subir nas margens. Prepara os anzois e coloca-lhes o engodo lançando-os dentro da água. É necessário pescar algum peixe para sustento da família. Levanta os olhos para o céu e repara na lua que se vai erguendo. Lua cheia
Maré viva.

Alfredo Mingau
(Crónica de ficção e realismo)
O CABO FERRADOR
Por João Brito Sousa

É uma personagem de António Lobo Antunes, naquelas crónicas curtas que escreve para a revista Visão. Aqui, sim, gosto muito. De ler um livro seu é mais difícil, porque não consigo. ALA deverá ser um bom escritor mas ainda não me ensinou como devo começar a ler as suas obras . E compete esse trabalho ao autor.

Todavia, não quero retirar-lhe o mérito que possui, porque é um escritor que vende e é credível internacionalmente, portanto.... tudo dito. Gosto das crónicas curtas que escreve na Visão, como disse e, na última, creio, fala do cabo ferrador, que possivelmente teria estado com ele na tropa.

Pego neste assunto, porque num romance que comecei a escrever e está à espera de vez para lhe voltar a pegar, precisava de saber como era isso de ferrar os animais e fui investigar. Achei piada á forma como aquilo se faz, pois o animal às tantas fica de pé, com assentamento nas mãos da frente e numa pata traseira e lá terá de se aguentar.

Por sua vez, o ferrador com o seu avental de couro, vai buscar a ferradura, adapta-a á pata do animal e leva-a à forja para amaciar o ferro e poder trabalhá-lo.

Ali para os lados da juventude do Jorge Tavares havia uma estrebaria, que recolhia animais e fazia esse trabalho.

Profissões que muitas vezes não damos importância mas que é indispensável saber. Será que a malta nova lhes pega? Como outras, a de tosquiador, a de capar animais e por aí fora.

O cabo ferrador de Lobo Antunes é especialista. Nisto e noutras coisas.

Deixo-vos este pequeno texto e um abraço.

JBS