sexta-feira, 22 de outubro de 2010


A MORTE LENTA
História de ficção

Alfredo Mingau

A velha comia com as mãos para sujá-las e depois poder lavá-las.
Já não sabe a sua idade, não se recorda, passaram-se muitos depois dos 90.
Sobre a mesa alinham-se os alimentos, cuidadosamente escolhidos, os sabores. Cada sabor tem uma história e uma recordação que, no paladar da mulher idosa, provocam uma cascata de sentimentos confrontados.
A língua e a boca desdentada da velha lutam entre o desejo e a necessidade, o asco e a recusa.
Porque nem todos os alimentos servem para o mesmo, porque cada alimento vem de um lado diferente da terra e porque uns matam e outros engordam.
O casebre da velha, bastante deteriorado e com o telhado a cair, a porta e janela com grandes rachas por onde entra o vento, o frio e a chuva, fica isolado perto de Mar e Guerra e os alimentos são provenientes das hortas das redondezas de Mar e Guerra e dos Braciais.
A velha analisa-os a todos, antes de os levar à boca, no meio de atrozes vómitos e de fome a desvanecer-se. A fruta inofensiva e a fruta que ofende excitam o seu corpo.
A fruta inofensiva não excita a sua fome, mas tem que a comer. Pega-lhe entre as mãos e morde-a, com os poucos dentes, e com asco. Enquanto a mastiga, no entanto, não se sente mal; sente um bem-estar tranquilizador.
Continuaria mastigando em paz, até ao fim, se não fosse a outra fruta; aquela que os demónios dos meninos, o “Escritor”, dos Braciais, e o “Tarreta”como lhes chama, todos os dias lhe trazem e que vão buscar aquelas hortas e colocam na sua cesta, porque essa fruta está a olhar para ela. E, enquanto mastiga, a velha pensa na “outra”, na que poderia estar a comer em seu lugar. A “Morte”
Ela cospe os caroços e prepara-se para o seguinte assalto.
A bela fruta olha-a e ela fica com a boca ensalivada. Pega-lhe com as mãos e não pode deixar de a acariciar, de acariciar também com ela a cara e os lábios. E deixa que o perfume da fruta entre vagarosamente pelo seu nariz, que move as suas asas de prazer.
A mulher, que é afeiçoada a esta fruta desde há muitos anos, solta os cabelos, que levava preso e, com o vestido descomposto, abre a boca desdentada para morder.
Os poucos dentes comunicam-lhe imediatamente que está a vir, que está a subir o antigo sabor: o leite da fruta afoga as gengivas, a língua e o paladar.
As rugas acentuam-se pelo esforço cerebral que faz para recordar o nome da horta onde o demónio do menino “Tarreta” vai buscar a fruta… E, de repente, com alegria demoníaca recorda que é na horta do “Caetano”. Sorri. O filho dele abalou, muito novol para um país estrangeiro, e por lá ficou.
E a boca, assim rejuvenescida, começa a mastigar numa carreira com os poucos dentes desbocados, e a velha goza com o sabor que, imediatamente também, sabe que a está a matar
A velha mastiga o prazer e o asco da morte, e enquanto o leite da fruta lhe pinga pelas comissuras dos lábios e pelas mãos, olha com os olhos avermelhados para o espelho em frente, sabendo que não tem antídoto para a morte que se aproxima inexoravelmente.
Recompõe o penteado e o vestido e, calmamente, espera a viagem, a única que vai fazer em toda a sua vida: A viagem anunciada…

(Nota do autor: - A alusão a pessoas e locais é mera coincidência)