CUMPLICIDADE
Era
noite. A calçada íngreme estava escorregadia da chuva da tarde e, apesar do
passo apressado, as botas teimavam em não querer subir. Não gostava de se
atrasar e, naquele dia, era a última coisa que podia acontecer. Lá em cima, o
largo estava deserto e o frio pedia um espaço acolhedor. Quando chegou, o seu
lugar preferido - à janela, estava ocupado e teve de se sentar num outro. Não
tão bom. Não tão familiar. Tirou o casaco. Desenrolou o cachecol do pescoço.
Fez o melhor que pôde para se deixar levar pela descontração.
À hora
combinada, o lugar vazio foi ocupado por um sorriso há muito familiar. Há muito
não visto. Sempre lembrado.
Há tanto tempo que os seus olhos não se cruzavam... Estava, de novo, em casa. Estava no aconchego que, sem o ser, sentia como seu. Aquela companhia sabia-lhe a casa, a conforto, a sempre.
De um lado um vodka - o gin ainda não estava na moda - e do outro algo parecido. A conversa fluia, como se nunca tivesse sido interrompida pelos anos - talvez fosse do álcool, ou não. Preferiu acreditar que a culpa tinha outro nome: cumplicidade.
A noite foi breve, pois o dia seguinte tinha o sabor amargo da obrigação. Lá fora o frio não se fazia sentir e nunca um Novembro chuvoso como aquele lhe parecera tão quente. Despediram-se. Num sussurro, quase segredado, ficaram palavras que lhe soaram a promessa - impossível de ser cumprida, pensou. A esperança.
Nunca as esqueceu. Antes as tivesse apagado da sua memória e do seu coração.
A calçada
foi descida a medo. Estava escorregadia. O medo de cair e de não se voltar a
levantar.
Margarida
Vargues
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