8ª de uma série de boas leituras
De autores nacionais.
Um arranjo e digitalização de Roger.
De autores nacionais.
IN SOFIA DE MELO BREYNER
RETRATO DE MÓNICA
Mónica é uma pessoa tão extraordinária
que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional
das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as
manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos
jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer
bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc.
XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer
ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais,
estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e
ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas
parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da
pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho
severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e
constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso
e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e
à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só
uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele
que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é
oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à
santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma
disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica
nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos
os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de
utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem
ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por
isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm
sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na
conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas
que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço
da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos
outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino
de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima
de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega
a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado
para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a
parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que
Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem
tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando
ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles
não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando
para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as
situações mundanas. O mundo dos negócios
é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado
à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz
casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às
vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a
vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais
nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os
humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores
relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes,
admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que
está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício
construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica.
Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando
com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há
evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe
deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que
os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente
a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais
firme fundamento do seu poder.
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