5ª de uma série de boas leituras
de Autores Nacionais.
IN VITORINO NEMÉSIO
UM PASSEIO A
CAVALO
Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico
ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da Caldeira sentiu-se
uma tropeada, depois pó e
um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope:
― Slowly! Let go him
alone ...
Os cavalos meteram
a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma
na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo.
― Ah, não posso mais ...
O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale...
― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar ... prender e folgar ... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro
lado. That’s dangerous! ...
Roberto Clark
exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes
hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como
quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais
espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água.
― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Jóia, que apanhou aquele passo escangalha-do da charrette ...
― Quê? A égua de teu
pai, o peru? ... Half-bred ... Já lhe disse que
tem de vendê-la.
― Ah! Se o tio
conseguisse! ...
― Com o dobro do
dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É
o meu presente de anos.
Margarida sorriu; mas
mostrou-se reserva-da, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os
passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e
teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. Para tirar o avô das
escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um
braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo
de escorregar nos limos. Mas teimava;
metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a
caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava
defronte.
Nesse ano quisera nas
Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio
aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham
jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que
enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns
copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem? ...
― Velha, não; mas enfim
... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas
...
Sentiu sede de se abrir
toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da
recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo
menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos
tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas;
os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em
quando as ventas.
... Envelhecer não
seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme
em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos
como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do
Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas
... sem ninguém.
O tio tinha dito:
«viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os
olhos nas orelhas do cavalo.
Um arranjo e digitalização de Roger. Gostaram de ler?
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