sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010


Do romance

ONDE SOPRA O ARACATI


Aqueles homens partiam para os interiores selvagens sem olhar para os lados e para trás, ora em busca de pedras e metais preciosos, ora do gentio para escravizá-lo. Um, três, cinco, oito anos! Às vezes, esperava-se para nunca mais! Alguns se transformaram em lendas. Com o passar dos anos, rareavam. Ainda assim, pergunta-se: eram homens ideais? A quem interessava, se a coragem não valorizava a mulher além de sua condição servil?
Chapadões, serras, vales, florestas, litoral... onde estivesse o homem, anunciava-se a miscigenação miraculosa entre europeus, índios e negros, originando caldear consistente, caracterizado pela cultura antepassada multifária.
Primeiro, foi o encontro entre portugueses desasseados e índias. Eles não tomavam banho, lavavam as intimidades e ficavam por aí. Elas se banhavam de duas a três vezes por dia. Constituiu-se em raridade a cruza entre o índio e a mulher branca.
O português pioneiro, desqualificado e egresso da pior delinqüência, era rude, insensível, desumano, egoísta e cobiçoso. Outros tantos adjetivos se amontoariam, melhor definindo a espécie de gente que veio para as terras do Novo Mundo.
As índias eram livres para o amor. Esse relacionamento modificou as carcterísticas físicas e culturais da descendência. Surgia o filho das terras recém descobertas, virgens e expectadoras das ritualísticas tribais. Era uma geração nova traduzindo a mestiçagem indômita do Brasil embrionário, onde o macho decidia o destino dos grupamentos, como ação imperiosa da natureza mais determinadora.
A mulher paria e trabalhava. O índio pescava, caçava e guerreava. O português desbravava, colonizava, explorava e farejava riquezas; sua prole mameluca emergia do mundo aventureiro. Do futuro dessa gente, quantos sabiam? Ah, se advinhassem!
Bifurque-se o entendimento sobre a causa e natureza da opressão sofrida pela mulher. Muitas são desconhecidas; outras, óbvias. Não havia pior que o indígena no vezo de tratá-la com superna indiferença. Pouquíssimo como companheira, mãe de seus filhos, parceira na dor e na alegria. Se o homem branco rendia homenagens ao seu falo, subindo-lhe à cabeça os comemorativos afins, subjugando a mulher à intensidade de sua lascívia para, ao depois do prazer, mantê-la ainda disponível ao seu lado como companheira, mãe e mantenedora do lar e da educação dos filhos, o indígena, a seu turno, fazia a mesma operação, só que rendendo tributo ao tacape, com desprezo à fêmea após o êxtase. Contraditoriamente, as rudes experiências do gentio foram de enorme validade, pois nada mesquinhas à liberação da fêmea, transformando a história numa aventura de libertação feminil.
Se a protagonização e o patrocínio dos portugueses fossem algo exclusivo na encenação dos fatos e acontecimentos, a História mostraria resultados muito diversos. Com o português, o sentimento de posse sobre a mulher obrigava-a ao conviver monogâmico. É verdade que nunca se traiu tanto; quem pensar o contrário, recorra à história e encontrará lares tomados de choramingos e reclamos. Os homens lançavam-se nas mais variadas empreitadas, tantas vezes sucumbindo em favor das grandes descobertas. Deixavam suas jovens esposas sob esperas indefinidas. O homem branco não se liberava da tradição egocêntrica no que tangia à posse irresoluta da mulher. Quando à índia, mantinha-se ela ao alcance da lascívia do aventureiro português. O índio não mastigava mesquinharias como as cunhadas pela civilização européia. Entregava-se ao sentido procriador das relações.
Em algum lugar da alma sertaneja remanescem singularidades dos preadores de bugres, coabitando com a doçura, a ingenuidade e a selvageria do gentio.
Na comunidade indígena, primeiro o homem. A mulher encarnava a submissão; aquele cultivava o hábito da liberdade. A mãe era babá e ama de leite. Nutria o filho, que atendia aos predicativos e circunstâncias ditadas pelo pai. Ela não influenciava na criação.
O índio era apático em relação à mulher, no momento da divisão do pão. A exceção revelava-se quando o objeto da doação se referisse à libido.
Nos rituais antropofágicos, outorgava-se à mulher o pesado da lida. No descambar da subsistência canibalesca, aos homens, como aos leões, privilegiavam-se as primeiras porções, com o desfrute dos melhores nacos da carne moqueada. Também eram homens, esses inconfundíveis da raça!
Morto o marido, a índia casava com o cunhado, que a escravizava e desconsiderava sua honradez. Nessa trilha, amamentava o filho até após completar quatro anos. Depois, o menino deixava-a e seguia o pai no aprendizado das artes do arco, dos escudos de couro de anta, do tacape, da esgaravatana, do fojo, do mundéu ou arapuca, das bolas e tantas quantas existissem no grupamento tribal a que pertencesse, visando a guerra, a caça e a pesca.
As mulheres idosas preparavam farinhas, venenos e bebidas fermentadas, como o aypy-y, licor de aipim; o auaty-y, , licor de milho; o caju-y,, licor de caju; o janipa-y, licor de jenipapo; o pacova-y, , licor de banana. As bebidas recebiam o nome genérico de caju-y. Os europeus alteraram tal referência para cauim. As velhas índias facilitavam a fermentação das raízes e frutas, mastigando-as.
O pai dava nome à criança, que podia ser de uma árvore, um animal ou uma ave. Crescida, ela escolheria o nome de guerra definitivo conquistado nos combates. Essa troca encerrava a simbologia do merecimento, sem o qual o índio permaneceria com o nome original até a morte.
Eram muitos os encargos da mulher. Os homens caçavam, pescavam, construíam as malocas, protegiam a tribo e guerreavam. Elas teciam redes e cordas de embira ou algodão; moqueavam a caça e o peixe; limpavam cadáveres humanos nos festins antropofágicos; reduziam peixes a pó para melhor conservá-los; fabricavam utensílios domésticos, como talhas, vasos de barro, cuias, cestas e balaios de palha, peneiros, igaçabas, tipitis, canastras de junco, patiguás, jamaxis; produziam farinha de mandioca. Na agricultura, os homens limitavam-se a roçar o mato, enquanto a mulher plantava, cuidava e colhia os principais alimentos da subsistência, como mandioca, milho, cará e feijão. Nas matas, elas transportavam provisões e outros objetos.
Executado o inimigo, competia às índias idosas limpar o cadáver e prepará-lo para o banquete. Dele participavam aliados e membros da tribo. Fosse pouca a carne para atender os partícipes da comilança, destinavam parte dela à preparação de caldos e sopas, onde colocavam os ossos, de modo que todos comessem. Outra vez, convocava-se a mulher para o preparo da iguaria.
A antropofagia era solenidade concorrida. Nela se destacava a coragem do prisioneiro diante de sua breve execução. Amarrado, afrontava os executores, dizendo-lhes que seus companheiros o vingariam e que também já comera muitos inimigos. A bravura dos sentenciados à morte transmitia força aos vitoriosos para enfrentar futuras eventuais derrotas, não recuando nos confrontos. Os índios não gostavam de medrosos e covardes. Acreditavam que lhes eram transmitidas essas qualidades, ao se banquetearem com sua carne.
Quando não submetiam o prisioneiro ao ritual do sacrifício de imediato, levavam-no a aguardar a ocasião em local próprio. Ali, o inimigo recebia bom tratamento. Destinavam-lhe uma mulher para acompanhá-lo. Advertiam-na, porém, para não se apegar ao prisioneiro.
A vantagem de ser mulher era escapar da culinária inimiga. Mantinham-na escrava. Durante o tráfico de escravos indígenas, vendiam-nas por ninharia. Valiam insignificância, embora representassem mão-de-obra importante.
São apontamentos de fatos e acontecimentos apurados pelos idos de mil, quinhentos e poucos, quando os conquistadores espanhóis, para as bandas do pacífico e dos andes, alimentavam seus cachorros com carne de índio, segundo afirmava o Frei Bartholomeu de Las Casas. Matavam-nos e faziam postas, como se se tratassem de bichos do mato.
Os costumes transmudaram-se, plantando-se a semente da civilização nas serras, vales, campos, areias e oceano. Forjava-se um povo mais-que-perfeito, lavrador de liberdades, repugnando os anos de subserviência, dor e desrespeito, sentenciando que no Ceará não tem disso não!
Mudanças profundas. Deu-se caldeamento gerador de mulheres fortes, decididas, tuxauas! A "Capitania do Siará" de 1535 ficara para trás.

da autoria de
Antonio Kleber Mathias Netto


Saudações Costeletas
António Encarnação

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