quarta-feira, 2 de março de 2022

 

FUGIR DA GUERRA


Lembro-me do primeiro dia em que aqui entrou. Vinha de cabeça em baixo, num misto de vergonha, medo, respeito e submissão. Havia, também, alguma revolta nos seus tímidos gestos.

Acabava de chegar da Ucrânia. 

Não conhecia ninguém. Numa primeira conversa, na única língua comum - o inglês - acabei por perceber que fugia da guerra. Mas que guerra? A guerra que podia estalar a qualquer momento... 

Nao queria ter vindo. Deixara para trás os amigos, alguma família, os seus hábitos e o seu mundo de adolescente. A contrariedade toldou o seu olhar  meses a fio, depois daquele primeiro encontro. 

A revolta e a contrariedade dentro de si dificultavam a aprendizagem do português com a desenvoltura desejada, que eu já experienciara noutros alunos, e apenas este ano a evolução é notória. Nunca teve PLNM na escola que frequenta - não sei bem porquê: não há turma, não há professor, não há horário, não há vontade... 

Em Outubro vi-lhe a felicidade estampada no rosto ao saber que iria regressar para passar o Natal,  rever a família, os amigos e os lugares que deixara para trás há mais de dois anos. No regresso trazia um misto de sentimentos dentro de si e acabou por me confessar que tinha gostado muito de estar na Ucrânia, mas que Portugal já era a sua casa. Disse-me tudo isto com alguma culpa, como se não fosse suposto sentir-se assim, como se o dever com a pátria estivesse a ser traído por uma espécie de amor maior. 

A última aula que tivemos foi na manhã anterior ao rebentar da guerra. Ao acordar com a notícia, foi a primeira pessoa que me veio à cabeça e não pude deixar de pensar em como se sentiria naquele momento. Soube, entretanto, que alguns dos seus que lá estão, se encontram, neste momento, em abrigos subterrâneos... 

Um dia que volte - se isso acontecer - aquele que foi o seu berço será, com certeza, apenas uma sombra, uma mancha acinzentada, uma ruína do que, por vezes, me descreve com os olhos postos no vazio e a saudade na voz, como um lugar bonito e que eu gostaria de visitar. Tens de lá ir, disse-me já, tantas vezes... 

Sinto-me impotente e o sal cobre-me o rosto enquanto trocamos mensagens de dor, de medo e de tristeza, de fé, de esperança e de oração. 

Trago estes miúdos cá dentro e, se pudesse, aliviava-lhes as dores, especialmente em momentos de agonia como o que se vive agora, como o que se vive demasiado perto para que possa parecer uma ilusão...

Margarida Vargues