domingo, 5 de setembro de 2010

O RESGATE DAS MEMÓRIAS

Por Norberto Cunha

Pouco depois de saber que, a brevíssimo prazo, o Café Aliança seria encerrado, revisitei uma derradeira vez aquele espaço de convívio, lazer, entretenimento, cultura e negócios que, durante decénios, tinha sido o mais emblemático da minha cidade. Mas fi-lo não com o estado de espírito de quem, por dever social, visita um moribundo, e sim com um antecipado sentimento de saudade e o claro propósito de evocar vivências e consolidar lembranças. Entrei pela porta monumental que dá para a Rua D. Francisco Gomes e percorri-o com a minúcia e devoção de quem regressa a um antigo lugar de culto, mas guardando para último da trajectória, porque primeiro na ordem do meu afecto, o salão de piso mais elevado e com acesso exterior pela Rua da Marinha. Ali, logo um conjunto de fotografias despertou a minha curiosidade. Não me lembrava de tê-las visto antes mas deduzi não terem sido expostas a título decorativo, já que, como elemento estético, o seu efeito seria nulo: não aumentariam ou perturbariam o prazer de quem por lá passasse ou permanecesse. De facto, como ao aproximar-me confirmei, a sua função era acima de tudo simbólica e testemunhal. Nelas figuravam, isolados ou em grupo, alguns dos mais ilustres frequentadores e visitantes ocasionais do café, quer de antanho, ou de tempos mais recentes. E uma houve que me requisitou atenção mais prolongada. Mostrava um conjunto de notáveis farenses (naturais e adoptivos) muitos dos quais reconheci de imediato, designadamente, Mário Lyster Franco, Emiliano da Costa, Cândido Guerreiro, António Miguel Galvão, Joaquim Magalhães, Marques da Silva, entre outros que já não lembro. Mas foi em vão que depois recorri à legenda para identificar alguns dos restantes, porque em relação a esses (e também a Marques da Silva) era omissa. Estranhando o facto, apurei a visão e forcei a memória, na tentativa de preencher o vazio. De novo debalde. Mas acabei por reparar que a desigualdade de tratamento para com os retratados não se ficava por ali. Primeiro, porque de entre os homens de letras que nomeava apenas Cândido Guerreiro vinha qualificado de “poeta”, quando, no mínimo, também Emiliano da Costa e Joaquim Magalhães eram credores dessa distinção. Segundo, e o mais intrigante, era a omissão do nome de Marques da Silva que, embora com reserva de muitos, também faria jus ao título de “poeta”. Se o autor da legenda apenas lhe tivesse recusado tal título até faria algum sentido (ao contrário dos casos precedentes) dado que o número de leitores da sua poesia pouco ultrapassava o seu círculo de amizades e havia quem a desvalorizasse mesmo sem a conhecer. Outros, e estou a lembrar-me de Mário Zambujal com aquela sua gazetilha em verso “… e tu ó Marques, tu que sem descanso andas no marcanço…”, com alguma razão a depreciavam, por vezes até com exagero, apodando-o de poetastro ou rotulando-lhe as quadras de “poesia de cordel”. Não obstante, também havia quem lhe reconhecesse valor. Pelo menos, o critico literário de um matutino da capital que comentando um recente livro seu começava mais ou menos nestes termos: “O Algarve é uma terra prodigiosa. Faz nascer poetas com a mesma profusão e qualidade com que produz figos: Muitos e saborosos”. Porém, se a poesia de Marques da Silva não alcançou sequer o reconhecimento do público farense, tal não obstou a que ele tivesse sido durante todo o tempo o mais popular dos membros do grupo retratado. Então, porque se esqueceu o autor da legenda de o nomear? Ou não saberia ele mais do que aquilo que escreveu? Ou terá sido deliberadamente que lhe omitiu o nome? E se sim, fê-lo movido por um ressentimento contra o aperaltado cinquentão que, de cravo na lapela, se pavoneava na Rua de Santo António e a quem, pelas costas, todo o mundo se referia por “Marmelada”? Ou, ainda, sem ressentimento mas por preconceito, terá decidido o autor da legenda que ao assinalar a presença do contestado poeta e ridicularizado cortejador entre os retratados, iria deslustrar aqueles que nomeou? Impossível decidir. Mas foi assim, questionando-me, conjecturando e recuperando memórias ao jeito da palavra que puxa palavra, que acabaram por me ocorrer episódios esquecidos da juventude, em primeiro lugar aqueles em que “o Marmelada” foi personagem central. Relatá-los-ei nas próximas “Crónicas”.

11 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro amigo
Cumprimentos de Boas Vindas.
Como sempre uma crónica bem escrita e bem apresentada.
Um abraço
Rogério Coelho

Anónimo disse...

Caro Norberto,

Viva,

A tua crónica parece identificar-se mais com o Café Aliança.

Não será?

Fico à espera das próximas e felicito-te pelo teu regresso.

Não faltes.

Ab.

JBS

Anónimo disse...

Caro Norberto,

Viva,

A tua crónica parece identificar-se mais com o Café Aliança.

Não será?

Fico à espera das próximas e felicito-te pelo teu regresso.

Não faltes.

Ab.

JBS

Anónimo disse...

não compreendo lá muito bem como é que um chamado "local de culto" pode trair tanto uma memória!...
fala certamente do café aliança e não do café atlântico...

antonio Siva de Brito disse...

CLARO QUE É O CAFÉ ALIANÇA ,
RUA D. FRANCISCO GOMES E RUA DA MARINHA .
SO QUEM NAO ESCREVE NAO CORRE O RISCO DE ERRAR .
PARABÉNS PELO ARTIGO !
P.S, - FICO AGUARDANDO O ARTIGO COM SR. "MARMELADA "
ANTONIO ENCARNAÇÃO

jctavares@jcarmotavares.pt disse...

Boas tardes costeleta Norberto Cunha,

Não me revejo neste ùltimo comentário...anónimo, desnecessário, e desmotivador dos que querem participar no blogue.
Fui frequentador do Café Atlântico, até ao encerramento. Nalguns periodos com frequência, noutros mais espaçadamente.
Confesso que não me recordo das figuras retratadas serem frequentadores assiduos do café, apesar de em determinado periodo da sua existência, bastantes intelectuais da cidade,nomeadamente jogadores de xadrez ( os melhores da cidade), leitores,professores, etc., o frequentarem.
Aos domingos era local previligiado para os lanches das famílias.
Como todos os locais de convivio localizados na baixa, tambem este infelizmente desapareceu...!
Resta-nos o Café Aliança (encerrado compulsivamente) e a Pastelaria Gardy (até quando?).
jorge tavares
costeleta 1950/56

Norberto Cunha disse...

De facto, a "crónica" refere-se ao café Aliança como dois leitores bem observaram. Agradeço o reparo,mas não faço a menor ideia de como cometi tal lapso já que ao escrevê-la tinha bem presente o nome daquele café, nome que jamais esqueci, nem podia. Apesar disso, nem quando revi o texto me dei conta do erro, mas como se sabe, o autor nunca é o melhor revisor daquilo que escreve.

MAURICIO DOMINGUES disse...

CARO NORBERTO
PARABÉNS PELA BELÍSSIMA CRÓNICA SOBRE O CAFÉ ALIANÇA E AINDA
DE NOS TRAZER À LEMBRANÇA UM VÉLHO
LOCAL DE CONFRATERNIZAÇÃO DE VÁRIAS
GERAÇÕES DE COSTELETAS.
DEPOIS DO NOSSO INESPERADO ENCONTRO
NO "CONTINENTE", DE RECORDAR ALGUMAS
PASSAGENS DE TEMPOS JÁ VIVIDOS, ESPERO ,COM MUITO INTERESSE, QUE O
POETA MARQUES DA SILVA SEJA RELEMBRADO NAS PÁGINAS DO NOSSO
BLOGUE . FICO A AGUARDAR.

UM ABRAÇO DO MAURÍCIO DOMINGUES

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Meu caro Norberto
Li a sua crónica e não reparei que estava escrito "Atlantico". Desta forma a culpa será minha por a ter publicado e por ter sido eu a publicar no blogue qua a ASAE mandou encerrar o café Aliança.
Mas será que está mesmo escrito Atlantico?
É que fui reler o artigo e reparo que o que está lá é Aliança.
Um abraço, e ficamos à espera da "Marmelada"
Rogério Coelho

António Palmeiro disse...

Olá Norberto
O que escrevo aqui não é um comentário, muito menos uma critica, é simplesmente um pedido de esclarecimento para uma dúvida que tenho.
O Julião Quintinha que refere na crónica é o poeta, escritor e jornalita Silvense?
Desconhecia que ele tivesse feito parte desse grupo do café Aliança.
A biografia dele refere a sua terra Natal Silves, teve actidades e grupos em Portimão, Beja e principalmente em Lisboa.
Grato se me puder informar e os meus parabéns pela sua magnifica crónica.
Sou um incondicional admirador da obra de Julião Quintinha.
Um abraço
António Palmeiro

romualdo.cavaco@sapo.pt disse...

Caro Norberto:
Sobre o Marques da Silva, lembro a quadra que lhe fez o Sidónio:
"Marmelada com que jeito,
Marmelada com que lata,
Trazes o cravo no peito,
Em vez de trazeres na pata...."
Sobre a falta do seu nome no quadro parece-me que os outros poetas não o consideravam como tal.
Certo dia, estando doente o Cãndido Guerreiro, foi visitado pelo Emiliano da Costa e pelo Marques da Silva. Após os votos de melhoras, o Marques da Silva terá dito: " Já que estamos aqui três poetas, poderíamos recitar a Ceia dos Cardeais.... ao que o Cãndido Guerreiro respondeu .... Não sei se o meu cão estará disposto a isso ..." -
um abraço - romualdo.