quinta-feira, 30 de setembro de 2010

PAPÉIS TROCADOS
Por Norberto Cunha

Nos fins de 1960 e depois de muito instado, aceitei a inclusão do meu nome na lista da direcção do Cineclube, apresentada a sufrágio para o mandato seguinte. Mas fi-lo tão-só, exclusiva e declaradamente, para possibilitar o seu formal preenchimento. Estava longe de imaginar que tal precaução de pouco me iria valer e que um mero formalismo me levava de novo a colidir com Marques da Silva, embora desta vez de modo voluntário, ainda que indirecto, como da primeira. Poucos meses após a tomada de posse e, provavelmente, em consequência do despótico estatuto que por essa altura o regime pretendia impor aos Cineclubes, dos seis ou sete membros do órgão directivo restavam apenas dois: o tesoureiro Veríssimo Ninguéns… e eu, que, ao iniciar-se a debandada, arrepiara caminho para minimizar o descalabro. Conduzíamos o barco tão bem quanto sabíamos e podíamos, quando certa noite ele me alertou para um problema que se agravava: as receitas mal cobriam as despesas. Conferenciámos com o Sr. Martins (?), o cobrador, e concluímos que o número de associados com quotas em atraso vinha crescendo mais do que supúnhamos. Contudo, ao que nos parecia, o de espectadores nas sessões não tinha diminuído. Pelo contrário, mantinha-se, ou conhecia mesmo um ligeiro aumento. Conclusão: Ou os porteiros do cinema eram descuidados, negligentes, não conferiam, como lhes cumpria, a validade da quota exibida com o cartão ou (que sabíamos nós?) facultavam o acesso a não associados e até haveria ex-sócios servindo-se de cartão prescrito. A ideia de fiscalizarmos as entradas para delimitar o problema, foi do Veríssimo. E também a iniciativa de encomendar as braçadeiras vermelhas com a sigla CCF que, sem mais, atestariam a nossa autoridade para tal procedimento. Não aplaudi a ideia, nem a iniciativa, desagradava-me desempenhar um antipático papel de polícia, mas… o cineclube periclitava e se, até à hora de se passar o testemunho, eu queria contar com o Veríssimo, assim tinha de ser. E na primeira oportunidade lá estávamos nós. Mal chegámos, um pouco antes da hora, o meu colega comunicou por alto o nosso propósito aos visados que, para surpresa nossa, de bom grado o aceitaram, embora assegurando que sempre cumpriam à risca a sua obrigação e que apenas iríamos perder o nosso tempo. De facto, enquanto a afluência de associados foi escassa, tudo correu na perfeição. Mas quando começou a engrossar tornou-se difícil exercer a nossa vigilância. O pior, porém, estava por vir. Apesar de o átrio já estar pejado de gente, a dada altura avistei Marques da Silva no seio de um pequeno grupo que se dirigia para a entrada. Não me apeteceu cumprimentá-lo e, para evitar que ele me visse, desloquei-me para o lado e em sentido contrário ao dele, acabando por ficar nas costas do conjunto, que segui a pouca distância, até ao meu local de observação. Foi daí que a primeira ponta do véu se levantou. No momento, Marques da Silva dava duas palavras ao porteiro e de seguida todo o grupo passou, sem que fosse exibido qualquer cartão! Contudo, não quis acreditar que o que vira era mesmo o que parecia: uma borla abusiva. Preferi dar o benefício da dúvida ao suspeito, considerando a possibilidade de ele não ter agido de moto próprio e se tratar de um procedimento ocasional com motivo justificável. Porém, dos poucos que me ocorreram, só um me pareceu plausível, embora preocupante. Desde logo, por não ter reconhecido nenhum dos acompanhantes do mal amado poeta; depois, porque sinistros eram os ventos adversos ao Cineclubismo. Por outras palavras: os pseudo borlistas podiam ser agentes da polícia política… Mas a apreensão resultante da conjectura não durou muito. Não tinha decidido ainda que atitude tomar e, para meu espanto, de novo se aproximava Marques da Silva à cabeça de outro grupinho e logo achei que já seriam polícias a mais… Afastando-me um pouco, discretamente pus-me a observar a comitiva e verifiquei que a sua maioria era de gente conhecida e insuspeita. Esperei para ver e… à excepção das “duas palavras” ao porteiro, a cena de minutos antes repetiu-se! Quase corri para o Veríssimo que se encontrava de plantão na entrada ao lado. “Anda cá”, pedi-lhe, arrastando-o para dentro onde o grupinho acabava de parar, e perguntei-lhe: “Estás a ver aqueles sujeitos ali à conversa com o Marmelada?”. “Estou sim. E então?”. “Entraram todos à borla com ele”. “Tens a certeza?”. “Absoluta. E já não são os primeiros”. “O quê? Vamos já falar com o sacana”. Surpreendi-o com a minha recusa, mas prometi-lhe que depois lhe diria o motivo, e ele não perdeu tempo, arrancou. À distância, restou-me imaginar a azeda e atribulada conversa entre os dois pela forma como a postura, o gesto e a expressão de Marques da Silva evoluíam: Surpresa, altivez, sobressalto, embaraço, abatimento. E isto ao mesmo tempo que, um a um, e com um discreto aceno, os envergonhados borlistas se iam despedindo dele, invertiam a marcha e saíam. Só dias depois descobri que a gerência do cinema não tivera conhecimento prévio do nosso empreendimento. E, por um lado, ainda bem. Se assim não fora, não se teria consumado a troca de papéis entre mim (que de antigo transgressor passei a vigilante) e Marques da Silva (ao fazer o percurso inverso). E graças a ela, por um tempo, as borlas foram sustidas. Porém, por outro lado, o desfecho dessa troca, foi, talvez, mais penalizador para mim que para o desfeiteado gerente. Ele, por culpa própria, é certo, saiu humilhado. Mas eu fiquei com tanta pena daquele afável e conhecido gentleman apanhado em contra-mão, que logo decidi precaver-me de futuro contra toda e qualquer possibilidade de, por forma directa ou indirecta, voluntária ou involuntariamente, voltar a bulir com ele. Decisão severa, incómoda e problemática que no entanto sempre respeitei, por vezes com sacrifício de acalentados propósitos ou desejos.

2 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Mais uma bela crónica do Costeleta Norberto Cunha, com uma história "Daquele Tempo"
RC.

MAURÍCIO DOMINGUES disse...

CARO NORBERTO
BOM TRABALHO !
O ESQUEMA ESTAVA INSTITUIDO E ERA
UTILIZADO NOS CAMPOS DE FUTEBOL,NAS
ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS, NOS JOGOS
DE FUTEBOL E SEMPRE QUE ERA NECES-
SÁRIO PAGAR BILHETES.
AINDA ME RECORDO QUANDO HAVIA
JOGOS NO CAMPO DE S. LUIZ, ENTRE
OS DOIS GRANDES RIVAIS, FARENSE E
OLHANENSE, A RAPAZIADA SEM CHETA,
MAS DESEJOSA DE VER O JOGO PUNHA-SE
AO LADO DUM ADULTO E COM AS LAMÚRI-
AS DE SEMPRE ,"SENHOR LEVE-ME CONSIGO ", LÁ PASSAVA PELO PORTEIRO
AO LADO DO SEU "PAI" DE OCASIÃO .
UMA VEZ DENTRO DO CAMPO DESAPARE-
CIA COMO UMA COBRA POR ENTRE A MULTIDÃO.
A LIÇÃO APRENDIDA NA JUVENTUDE
ERA MAIS TARDE, JÁ ADULTO, USADA
POR ESSES BORLISTAS INVETERADOS !
HOJE, CERTAMENTE QUE HAVERÁ OUTROS ESQUEMAS MAIS REFINADOS, COM
A OFERTA DE CARTÕES DE LIVRE TRÂN-
SITO E UTILIZAÇÃO DE CAMAROTES OU
LUGARES ESPECIAIS.
HOJE, TUDO EVOLUIU CARO NORBERTO!

UM ABRAÇO DO MAURÍCIO