domingo, 21 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

FAMILIA

Jorge Amado
...
Foi o Boa-Vida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa de ouro de fazer medo. O dono da casa, pelo jeito, parecia colecionador, o Boa-Vida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no prego haviam de dar uma fortuna. À tarde Pedro Bala foi com o Boa-Vida ver a casa. Era um prédio moderno e elegante, jardim na frente, garagem ao fundo; espaçosa residência de gente rica. O Boa-Vida cuspiu por entre os dentes, desenhando uma flor no passeio com o cuspe, e disse:
- E dizer que nesse mundo só mora dois velhos, hein?
- Toca batuta ... - comentou Pedro Bala.
Uma empregada abriu a porta da frente, saiu para o jardim. No hall, que ficou à vista, eles perceberam quadros pela parede, estatuetas sobre as mesas. Pedro Bala riu:
- Se o Professor visse isso ficava doidinho ... Nunca vi tanto pegadio com livro e pintura.
- Ele vai fazer uma pintura como eu, deste tamanho ... - e Boa-Vida mostrava o tamanho separando as mãos uma da outra.
te, pois ela estava curvada. Pedro Bala espiou. Eram seios alvos terminando em bicos vermelhos. Boa-Vida suspirou ao seu lado.
- Que montanha, Bala.
- Cala a boca.
Mas a empregada já os vira e os olhava como a perguntar o que desejavam. Pedro Bala sacou o boné e pediu:
- Podia dar uma caneca de água à gente, por favor? O sol tá encalistrando ... - e sorria, limpando com o boné a testa, onde o suor corria. Estava muito vermelho sob o sol, seus cabelos loiros crescidos desabando sobre as orelhas em ondas maltratadas, e a empregada o mirou com simpatia. Ao lado Boa-Vida fumava uma ponta de charuto, com um pé em cima da gradezinha do jardim. A criada primeiro falou para Boa-Vida com desprezo:
- Tira esta pata daí de cima ...
Depois sorriu' para Pedro Bala:
- Trago a água já ...
Voltou com dois copos d'água e eram copos como eles nunca tinham visto de tão bonitos. Beberam a água, Pedro Bala agradeceu:
- Muito obrigado ... - e baixinho - lindeza.
A empregada falou também baixinho:
- Frangote atrevido ...
- Que hora tu sai daqui?
- Te repara. Tenho meu homem. Ele me espera às nove horas da noite naquela esquina ...
- Pois hoje tou na outra ...
Saíram pela rua, Boa-Vida fumando sua ponta de charuto, abanando o rosto com o chapéu-coco que usava. Pedro Bala comentou:
- Eu sou é mesmo simpático ... Aquela tá no papo ...
Boa-Vida cuspiu novamente entre os dentes:
- Também com essa cabeleira de mulher, toda cheia de cachos ... Pedro Bala riu, mostrou o punho fechado ao Boa-Vida:
- Deixa de inveja, mulato pachola ...
Boa-Vida desviou a conversa:
- E o ourame?
- É trabalho primeiro pro Sem-Pernas ... Amanhã ele dá um jeito de embocar na casa e passar uns dias morando. Depois que ele souber onde fica os troço melhor a gente vem, uns cinco ou seis, tira o ourame ...
- E tu perde a comida?
- A criada? Como hoje mesmo ... Nove horas tou firme aí. ..
Voltou-se. Olhou a casa. A criada se debruçava na grade, Pedro Bala deu adeus. Ela respondeu, Boa-Vida cuspiu:
- Ó peste de sorte, nunca vi ...
...
IN Jorge Amado – Capitães da Areia
1937

Colocado por Rogério Coelho

2 comentários:

Anónimo disse...

Mano,

Muito bem.


Já ocnhecia mas lê-se sempre bem.
Magnífico.

Toca batuta, duas palavras que valem cem ou mais.

Que montanha de texto, mano.

Maravilhoso.

Ab.
JBS

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Não vou ficar por aqui, Ermão.
Tenho a colecção completa do Jorge Amado. É um dos meus autores preferidos. Quando saiu a telenovela da "Gabriela, Cravo e Canela", já eu tinha lido do Circulo Cultural do Algarve que eu frequentava, como associado, todas as noites depois do jantar.
Um abraço
Rogério