segunda-feira, 29 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

"Faro è là minuta"

Rua de Santo António

Lina Vedes

Nos anos 40/50 vivíamos como se o coração da cidade concentrasse na parte velha, em todo o espaço definido entre muralhas, e a alma na Rua de Santo António e ruelas que nela desembocam.
Era a principal rua da cidade, a rua das lojas, o centro comercial, o passeio público, o ponto de encontro de amigos.
Toda a população convergia para a Rua de Santo António onde se encontravam os estabelecimentos que vendiam os produtos essenciais à vida, e passeava, da Pontinha ao Jardim, trocando palavras de afecto ou maldizentes .•
Um olhar clínico de observador atento descobriria na rua principal de Faro, humanamente bem recheada, mulheres na azáfama das compras, intervalando-as com conversas de amigas, e homens de chapéu na cabeça, cavaqueando nas esplanadas dos cafés ou à Pontinha, local de concentração da boa e má-língua.
De tarde, após a saída das aulas, grupos de estudantes impunham à rua nova pintura, com alguns rapazes vestidos com as negras capas e batinas.
Pés encostados à parede fixavam-se ao pé da Artys, à Pontinha, perto do Banco Ultramarino e do Cinema, na Gardy, espreitando e comentando sobre os grupos de raparigas que num vai vem constante subiam e desciam a rua.
Vivia-se sob o signo da castidade, considerando-se que amar era impróprio. A sociedade impingia uma educação rígida com obediência intransigente, que bania por completo a carícia ou o beijo, "queimando" a rapariga que permitisse tal libertinagem. Os rapazes corriam o perigo de ser obrigados a casar ou punidos com prisão, se uma jovem de menor idade aparecesse desonrada ou grávida, culpabilizando-o.
Os jovens dessa época viviam "entalados" entre a realidade imposta e o próprio sonho ...
Disfarçavam a curiosidade mórbida, a frustração, a impossibilidade de contactos, observando-se e deixando-se observar. Os rapazes, fixos num sítio estratégico, as raparigas cirandando a mostrar-se, mascarando as verdadeiras intenções.
Éramos adolescentes e parecíamos uma verdadeira "praga" (temporária) ... A nossa sensibilidade descontrolada levava-nos a ser insolentes e grosseiros, atingindo o exagero, porque os nossos inibidores não estavam ainda ajustados.
Fazíamos julgamentos rígidos, mordazes, implacáveis, tirávamos conclusões precipitadas, respondíamos bruscamente sem qualquer tipo de tolerância.
Fazendo análise a esta fase da vida, comum a todos os humanos, compreendo como no meu tempo participei em acções impensáveis e imperdoáveis.
Na Rua de Santo António existia uma tipografia pertencente ao Sr. Serafim, que se situava onde hoje é a Palloran, fazendo canto para a Travessa Vouzela.
Uma amiga de Liceu, a Inês, ao consultar os Anais da Câmara Municipal de Faro de 1988, na página 108, descobriu, por casualidade, a indicação de um Eduardo Serafim, residente na Sé, com 48 anos, dono de uma tipografia, que entre 1899-1901, foi membro da Vereação Camarária (substituto). Logicamente, chegamos à conclusão que tal individuo teria sido pai do Serafim que nos aparecia na frente em 1955, a saber dos nossos desejos.
Aparecia o proprietário, atencioso, discreto, de frágil estatura, arrastando os pés como quem carrega um enorme e pesado fardo. O casarão de trabalho era enorme, fundo e escuro, cheirando terrivelmente a bafio, emprestando ao alfaiate um pouco desse odor...

Alojado dentro das calças subidas até ao peito e amarradas por um cinto de cabedal, via-se um enorme vulto parecendo uma almofada colocada entre as pernas.
Os nossos olhos brilhavam de gozo ... (que doença seria ...) e quando o Sr. Serafim nos perguntava, delicadamente, falando "axim":
- O que "dejejeam" as meninas?
- Xô ... xa ... rafim ... tem postais ilustrados?!!!!!
Saíamos porta fora sem saber qual a resposta.
Nos anos 40 iam à tipografia comprar bacalhau e nos 30, o Serafim filho, frequentador de aulas de músi6a, era alvo de diversas brincadeiras. Urinavam-lhe na flauta e ao colocar os lábios para tocar, exclamava:
- Quem deitou "xumo" de limão nos "orifixios" da flauta?
Existia outra vítima das nossas brincadeiras, na Rua de Santo António, o Coelho alfaiate, cuja loja ficava quase na frente da tipografia, um pouco mais para baixo, onde hoje é o António Manuel.
Este alfaiate era o inverso do tipógrafo.
De estatura franzina, com óculos metálicos e redondos assentes na ponta do nariz enquanto trabalhava, olhar de águia, afastava qualquer tipo de diálogo, impelindo-nos para a "partida".
Todas as tardes, à saída das aulas, entrávamos na tipografia que fornecia lindos postais ilustrados sobre 2l cidade de Faro e seus arredores.
Ao entrarmos, uma campainha suspensa na porta sinalizava- nos.
Tinha uma porta de acesso e uma ampla janela de peito a pouca altura do chão, que permitia ver todo o interior.
A meio da sala uma bancada de trabalho para marcar e cortar os cortes de fato e outra para passar a ferro que, quando utilizada, fumava por todos os lados.
O chão da casa com ripas de madeira podre rangia quando pisado.
Nunca vi luz acesa neste estabelecimento e para poder trabalhar o Coelho sentava-se à janela, numa cadeira baixa, aproveitando a claridade do dia.
Cosia colocando a roupa colada ao nariz.
Nós, ao passarmos no passeio da rua, junto da janela, metíamos o braço e dávamos uma forte "caqueirada" na cabeça do Coelho. Acontecia, às vezes, três ou quatro de seguida, à medida que caminhávamos umas atrás das outras.
Quando o alfaiate conseguia levantar-se e aparecer à janela, a injuriar-nos, já íamos longe, rindo da patifaria.
Onde hoje é a Zara (na parte da R. 1° de Dezembro) existia a Terçanaval, casa que vendia apetrechos de pesca, âncoras, roldanas, candeeiros de petróleo, "bombas" para matar insectos (uma maquineta cilíndrica com um êmbolo tendo por baixo um reservatório com o insecticida) '" O proprietário, todo elegante, parecia aos nossos olhos um indivíduo de vaidade extrema. Para se sentar "rapava" de um lenço de algibeira e sacudia com ele o assento da cadeira com receio de se sujar. Era o "cuzinho de veludo".
As lojas da R. de Santo António e D. Francisco Gomes seguiam-se umas às outras à esquerda e direita, com passeios para peões e trânsito ascendente, circulando ao centro. As camionetas da carreira para Olhão passavam por ali, obrigando os transeuntes a serem cuidadosos. Marcavam presença nestas ruas as farmácias Baptista, Graça Mira e a do Montepio; o Dr. Guerreirinho, perto da Gardy, com o seu consultório, os fotógrafos Correia e o Helder, a ourivesaria Bomba, o oculista Graça, o Farracha dos jornais, as decorações e mobílias da Casa Nobre, as louças do Carvalhinho, as tabacarias Pires e Sancho Lda. e a do Janeiro, a espingardaria Fazenda, o stand Pardal, o Cine Teatro Farense com a gerência do poeta, intensamente snob, Alberto Marques da Silva, conhecido por "marmelada", com o seu cravo vermelho na l'apela do casaco, o Clube Farense só para gente da "alta", o Ginásio por cima do Banco Espírito Santo e perto, na Rua 1° de Dezembro, a Casa das noivas, a padaria da família Costa, a Fiat ." e outras que poderão ter caído no esquecimento... A completar este enorme centro comercial da baixa farense, não há que esquecer as mercearias Gago e Aliança (com o hotel, café e bilhar) do Sr. José Pedro da Silva, o café Atlântico (em 1952 substituiu o Central), com uma linda sereia, em baixo relevo, numa dos paredes, a Gardy, a Brasileira, a Brasília do Sr. Marcelino, com bilhar, tendo a Pensão Sota no 1° andar.
Existia ainda a Pensão Luísa, pertencente à mãe do campeão de luta livre José Luís, que ficava por cima do Helder fotógrafo, onde hoje é o restaurante Chelsea. Ao lado, fazendo canto, tal como na actualidade, a casa dos bidés Pinto substituída, posteriormente, pela Lusbel (casa da borracha) e depois a Sayonara. A meio da rua, à esquerda de quem sobe, havia outro estabelecimento idêntico, a Fábrica Lusitânia.
Consigo visionar mais estabelecimentos como as sapatarias Cibele, a Atlas do Serpa, cujo empregado, o Sr. Ferro, era bastante simpático e empenhado.
As lojas de roupas vendiam tecidos a metros (não havia pronto a vestir), englobando artigos de retrosaria. Recordo a Labor e o Sr. Abel, balconista excepcional que vinha diariamente de Olhão, a casa Tabu cujo 1° proprietário, o Sr. Arbués, possuidor de uma "senhora barriga" de respeito, a passou ao Lopes, a casa Rodrigues com artigos de bom gosto e "de primeira", a casa Rosa e a Verde (restaurada em 1955) com óptimos empregados, o Sr. Machado, o Sr. Monteiro, o Sr. Gaspar e o Sr. Santos; a casa Carminhos do Fernando e do Virgílio, filhos da viúva Carminho, com loja na R. Filipe Alistão...
Não poderei deixar de focar os tecidos vendidos na Rua Tenente Valadim (rua dos Cavalos) nas casas Estevinha e Salomé, os electrodomésticos do Calapés, o Trindade (casa dos cestos), o correeiro Porto, os bilhares Olímpico, a cervejaria Aquário, a pastelaria Baleizão (Biju), o restaurante Flórida, as ourivesarias Seruca, o Alho, o Alhinho, o oculista Serra...
Recordo ainda as agências bancárias, Nacional Ultramarino, Algarve, Espírito Santo e a Caixa Geral de Depósitos construída em 1947, depois de acesa polémica comprovada num artigo do semanário Correio do Sul, que dizia o seguinte:

Quem manda em Faro?
“O Sr. Presidente da Câmara Municipal de Faro, numa entrevista recentemente concedida, não hesitou em qualificar de péssima a solução de se construir a filial da Caixa Geral de Depósitos à esquina da rua de D. Francisco Gomes.
Disse mais que ela tinha a franca e aberta antipatia da cidade inteira - o que, em boa verdade, já sabíamos - e esclareceu que tal localização não foi proposta pelo autor do plano de urbanização que, não só a não preconiza, mas até dela discorda.
Dela discordam também a Liga dos Amigos de Faro, a Comissão Municipal de Turismo, o Grémio do Comércio de Faro e várias outras entidades .•
Por que se persista então na triste ideia, ocorre muito naturalmente perguntar.
Que direitos se arroga a Caixa para impor à capital alarvia uma solução que todos repudiam
Quem manda em Faro?
Correio do Sul- 27 de Março de 1947

Quem manda em Faro?

Nos prédios derrubados para a construção da Caixa Geral de Depósitos existiam, no rés-do-chão, a casa de móveis Vieira, a mercearia "Casa Inglesa" e, dando para o Jardim, além de outros estabelecimentos, uma geladaria. No 1° andar era a residência e hospedaria de João Sota que a situou, posteriormente, por cima dos restaurantes Brasília e Cabaz da Fruta, que pegava com o Aliança.
Continuando, não esqueço as lojas que mais frequentava: as papelarias e livrarias do Sr. Silva, que transpirava honestidade, respeito e segurança, com secção de fotografia e brinquedos, a Académica, a do Alberto Capela e a Artys em frente à Brasileira. Na Artys, o pagamento mensal da despesa permitia-me levar artigos não de estudo mas de interesse pessoal. Lembro-me de ter comprado "A nossa vida sexual" de Fritz Kahn como se se tratasse de um livro de Filosofia.
Também recordo com simpatia a casa das telefonias Telefunken, do Arcanjo, que nós cravávamos pedindo para levar um transistor (grande novidade da época) à experiência, para que a mãe o comprasse posteriormente. Durante muito tempo, porque éramos muitas, ouvíamos deliciadas, música gratuitamente. Claro que nunca surgiu a possibilidade da compra!
Ao anoitecer a Rua das Lojas animava-se com gente que ia ao cinema e ao café. Figuras marcantes do comércio, da arte e da política entretinham-se, noite fora, desenrolando as suas oratórias...
Traziam "à baila" todos os acontecimentos políticos marcantes, discutiam sobre os perigos provocados pelos veículos, que circulavam a velocidades excessivas em artérias estreitas colocando os peões em risco... quando ainda não havia epidemia de veículos motorizados e os peões andavam pelas ruas sem preocupações especiais...
Ornamentando a rua não faltavam figuras curiosas pelas "baldas", invulgares e extravagantes, como o Zezinho Beirão, rodeado de gatos e com o inseparável "Pepito", cão acrobata, que fazia a delícia da pequenada ao tentar apanhar a bolacha, presa por um fio suspenso numa cana de pesca. Matou-se o Zezinho quando, com idade avançada, o internaram num albergue...
Um grupo de engraxadores, na altura do Carnaval, vestia o colega "Marrequinho" de bebé, com uma touca na cabeça e uma chupa de pano na boca, metiam-no num carrinho e desfilavam com ele na Rua de Santo António pedindo dinheiro, que seria gasto nos "copos". Uma vez lembraram-se de o mascarar de gorila. Pintaram-no com tinta preta, vestiram-no com uma tanga de tecido peludo e meteram-no numa jaula. A tinta e o tecido provocaram tal alergia no "Marrequinho" que se despiu, ficando nu dentro da jaula.
Curioso de se ver, pela rua, era a maneira de agir dos ardinas.
Em correria desde a estação do caminho-de-ferro, tentavam ser os primeiros a trazer os jornais do dia. Alguns tinham os clientes certos e iam entregá-los porta a porta. Lembro o Fausto, o Mefa, o Macarrão, o Chico Beiçudo, o Joaquim cabecinha à banda, o João Pírula, o Larguito, os irmãos Albino e os conhecidos Pardal e Vieguinhas.
Vendedores ambulantes colocados em lugares escolhidos, vendiam sorvetes no Verão a 5 tostões (tão chorados junto da mãe) … ou a dez tostões um "mola abaixo", em dia de festa. De Inverno apareciam com castanhas assadas e pinhões torrados (vitamina P) abertos com um prego, o que nos entretinha durante longo tempo. Desses poderei recordar o José Martins, o Chico do Gambozino de Lagos, o Manuel conhecido por "Ruço", malcriado, e com os dedos das mãos cheios de anéis de ouro...
Para mim, o prazer máximo acontecia, quando na chegada do Outono, a rua ficava impregnada com o cheiro da castanha assada!
Ainda hoje, na altura em que os dias estão a minguar e entro na rua pela Tenente Valadim sinto, intensamente, o cheiro da castanha assada a levar-me aos tempos de menina e moça...
As narinas dilatam de prazer e de nostalgia!!!!!!
E sinto que o fim da VIDA não é a excelência, mas o sabermos encontrar a FELICIDADE!!!!!!!!!!!!!!!

IN Lina Vedes – “Faro à lá minuta”
Crónicas na 1ª pessoa - 2010

Colocado por Rogério Coelho
(NOTA: Dado o tempo que levou a digitalizar esta crónica, pela sua grande extensão, chamo a atenção para qualquer "gralha" que possa existir, com as minhas desculpas antecipadas à autora Lina Vedes, que autorizou a publicação no nosso Blogue)

4 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Uma bela crónica, recordando os anos 40/50, extraída do livro "Faro à `lá minuta" de Lina Vedes. Estou convencido de que todos vão gostar de ler.
Rogério Coelho

Jorge Santos disse...

Excelente descrição,que nos faz recordar figuras e temas que alguns deles já estavam no esquecimento.
Parabéns e pela minha parte muito obrigado.

MAURÍCIO DOMINGUES disse...

Extraordinária descrição da baixa
da cidade de Faro nos anos 40/50, que intensamente vivi na minha juventude, e ao ler toda a crónica
publicada pelo Rogério Coelho no
noso Blogue, pareceu-me viver todos
os momentos descritos, todas as fi-
guras, personagens e acontecimentos
que a vélha cidade de Faro nos ofe-
recia nessa época !
Há muitos anos afastado do Algarve e particularmente de Faro,
onde vou esporádicamente, não sinto
o mesmo encanto nas actuais ruas da
cidade . Mais cosmopolita, sim,mas
menos atractiva e sedutora, cidade
onde passei os melhores anos da
minha juventude.

Parabéns à autora LINA VEDES.

MAURÍCIO S. DOMINGUES

joaormestre disse...

Ausente de Faro desde 1961, mas tendo vivido nessa linda cidade na época de 50/60, tão grato foi para mim ler descriçao tão pormenorizada para quem
conheceu muito bem, personagens e locais ali descritos,pelo que fui virtualmente transferido para esses longinquos tempos e com imenso prazer recordar com nostalgia de quem nunca esqueceu a nossa cidade de Faro.
Fico muito grato e felicito com toda a minha sinceridade a autora do artigo que tão bem soube ir procurar elementos que na época eram bem conhecidos pelos farenses e não só - porque eu pessoalmente sou alentejano mas farense do coração.
assim, só me resta dizer OBRIGADO
e desejando que continue a escrever sobre Faro, quer desses tempos já idos, como no presente, porque a cidade assim o merece.

João Mestre